Um dos episódios mais espetaculares da História da Salvação foi a travessia do Mar Vermelho. Perseguido pelos egípcios cujo faraó arrependeu-se de haver dado sua liberdade, o povo de Deus se viu encurralado frente a um novo e intransponível desafio: o mar. De um lado o exército do faraó, do outro o mar. “Não havia porventura, túmulos no Egito, para que nos conduzisses a morrer no deserto?”, reclamavam a Moisés. A predileção divina sempre se manifesta no milagre. O Senhor agiu pelas mãos do seu profeta, Moisés. O mar se pôs a seco e seu povo alcançou a outra margem “a pé enxuto”. Não, porém, seus algozes, cobertos pelas águas em seu nível normal.
Relembro esse fato em tempo de pandemia global. E o associo a um episódio recente, quando da tragédia do navio Al Salan Boccaccio, que naufragou em 2006 nas proximidades da famosa travessia bíblica. Mil mortos, quatrocentos sobreviventes. Fez lembrar a triste sina do Titanic, o navio do qual se dizia: “Esse nem Deus afunda!”.
Sua rota, no entanto, era inversa ao da travessia libertadora dos israelitas. Vinham da Arábia Saudita para o Egito. Detalhes apenas, que em nada altera ou justifica a tragédia daqueles viajantes. A não ser que elevemos essa reflexão ao plano filosófico, deixando de lado razões históricas ou religiosas.
Por outro lado, efetivamos muitas travessias similares em nossas vidas. Algumas com o amparo de um sonho de liberdade. Outras em sentido inverso, quando a luta pela sobrevivência nos transforma em máquinas, robôs a serviço da louca competitividade entre nós, esse vai e vem constante em busca do pão, do chão. Uns vãos, outros vêm. Você que vai para o lado de lá, porque é lá que residem seus sonhos. Você que vem para cá, porque aqui estão suas raízes, as motivações de sua existência.
Isso é o existir. Exige desprendimento, locomoção, metas a serem cumpridas, encontros a somarem forças, motivos que nos motivem… Eu pra lá, você pra cá. Você que chega e o irmão que parte. A travessia do mar da vida (vermelho no Atlas e na anatomia), essa sim, todos a fazemos querendo ou não. Alguns em fuga, outros antevendo a Terra Prometida. Alguns desencantados, desiludidos, outros alimentando esperanças.
Eis que a fatalidade um dia surpreende a todos, A embarcação afunda em plena travessia. O desencanto emerge na mesma proporção e intensidade. A quem recorrer nessas horas? Em tempos de tragédia globalizada não temos a quem recorrer, senão a Deus. Comandos humanos estão abaixo das ameaças de uma tragédia, pois que também estes poderão sucumbir. Nem sempre merecemos ou entendemos o conforto de uma sobrevida ou a tragédia da morte em certas circunstâncias. Há muitos que sobreviverão para repensar suas próprias omissões. Ou repensar seus conceitos de vida.
Essa é a passagem da vida. “Os cavalos do faraó, com efeito, entraram no mar com seus carros e cavaleiros, e o Senhor os envolveu nas águas, enquanto os israelitas passaram a pé enxuto o leito do mar” (Ex 15,22). Quem agora faz parte desse povo vitorioso? Entre os soldados do faraó, com certeza, havia muitos homens de boa índole, cônscios de seus deveres e fidelidade ao rei. Entre as vítimas da tragédia atual, cristãos, muçulmanos, tementes a Deus…. A fidelidade ao Rei independe de sua religião ou crença. Porque, mesmo com o navio em chamas, o naufrágio iminente, nosso Deus é o único que poderá nos levar ao “outro lado” com os pés enxutos.