O senso do censo

              “Naqueles tempos apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este recenseamento foi feito antes do governo de Quirino, na Síria. Todos iam alistar-se, cada um na sua cidade. Também José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, a cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, para se alistar com a sua esposa Maria, que estava grávida”. Esse longo e detalhado trecho de Lucas (2, 1-5) dá detalhes e fornece pistas interessantíssimas sobre o nascimento de Jesus.

    Entre os dois povoados havia uma distância de aproximadamente 150 km, o que é nada para nossos dias, mas uma verdadeira odisseia para uma senhora grávida que viajava no lombo de um jumento. Não percamos o senso, a razão dessa viagem em momento tão inconveniente. Jesus era conhecido entre os seus como o Nazareno, portanto filho de Nazaré. No entanto nasceu em Belém. Ora, por que atribuir-lhe a origem noutro lugar que não aquele onde de fato se deu seu nascimento? Para que se cumprissem as profecias e deixassem confusos seus detratores: “Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel” (Miq 5, 1).  Jesus seria contado entre os cidadãos de Belém ou de Nazaré?

    Essa questão seria levantada quando de sua vida pública. Poderia vir algo de bom da pobre galileia, onde a ralé de uma população sem cultura, sem tradição, sem leis, crescia e se multiplicava como erva daninha em tempos chuvosos? “É acaso da Galileia que há de vir o Cristo? Não diz a Escritura: o Cristo há de vir da família de Davi, e da aldeia de Belém, onde vivia Davi?” (Jo 7, 41-42).  Eis o sentido, a razão circunstancial dessa viagem inesperada de Maria e José, rumo à Judeia, terra do rei Davi. Um novo rei ali nascia, sendo contado entre os descendentes do maior dos reis de Israel. Cumprida a lei dos homens, passaria por Jerusalém para ser oficialmente apresentado ao Templo, alegrando o final de vida do velho Simeão, que tomou aquela criança nos braços e exclamou: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz… porque os meus olhos viram a vossa Salvação”. (Lc 2, 29).

    Tudo na vida daquele menino estava revestido de uma razão, um sentido maior que simples registros históricos, censos numéricos e contagens regressivas de uma história que ficaria no passado como qualquer outra. Mas não ficou. Ao contrário, bagunçou tudo, reformulando os calendários existentes, refazendo e arquivando o passado, recriando novos tempos, novos rumos a partir daquele nascimento. O antes e o depois, o que haveria de vir e o que chegou, o sonho e a realidade. Eis o senso, o juízo claro sobre uma situação de fé, uma nova maneira de rever as questões históricas, dados estatísticos e fatos corriqueiros na vida de um povo e transformá-las em desafios de mudanças. O senso da fé sobrepõe-se à frieza numérica e estatísticas da realidade terrena.

    Desde então, a vida oculta de Jesus em sua terra adotiva, sua pequena e pacata Nazaré, foi uma escola de aprendizado constante. O filho do carpinteiro, aprendiz do ofício paterno, ali cresceu “em graça e sabedoria”. Viveu em tudo as bênçãos de um lar abençoado, uma família sagrada, consagrada à sombra da submissão maternal de Maria e providente proteção paternal do bom José.  Sim, o homem atento à vontade de Deus e às revelações do seu Espirito Santificador, o mesmo que lhe deu o bom senso de percorrer longas estradas “para se cumprir as escrituras”. Mesmo quando essa estrada fosse caminho de fuga, trilha suada rumo ao Egito ou retorno abençoado às origens. Porque o que contava não era o recenseamento dos poderosos ou a ameaça destes contra a vida de inocentes. O que contava era o bom senso de ouvir e interpretar a vontade de Deus. Não fazer da vida um mero conjunto de dados estatísticos, mas um ato permanente para apreciar e louvar o dom da vida. Esse é o senso que nos falta.

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