Lições à beira de um poço

    Todos os pormenores do encontro da Samaritana com Jesus à beira do poço de Jacó (Jo 4,5-42) deixam mensagens de grande valor espiritual. Uma leitura superficial deste fato impede que se apreenda o essencial dos detalhes deste episódio. É preciso, antes de tudo, uma observação histórica. Havia uma dissensão profunda entre judeus e samaritanos. Os judeus detestavam os samaritanos por uma série de razões, inclusive por considerá-los um povo bastardo. Eles eram também uma gente herética porque não freqüentavam o templo de Jerusalém. Eles iam rezar no monte Garizim e judeus piedosos acreditavam que davam glória a Deus detestando os samaritanos. Era então uma injúria chamar alguém de samaritano e, sobretudo, de samaritana. Com efeito, a religião judaica, como outras religiões daquela época, considerava as mulheres como impuras desde o berço. Seus maridos também estavam maculados, bem como seus filhos e tudo que uma mulher de Samaria tinha tocado. Eis aí aonde foi parar Jesus. Estava numa região inimiga e herética e nela passaria dois dias. Ele aborda uma mulher três vezes impura, por ser samaritana, por ser mulher e uma mulher que tivera vários maridos. Diante dela, portanto, Jesus se faz três vezes contestador. Sem medo e com o poder que Ele possuía Cristo vai pulverisar esta tríplice barreira. Seu recado haveria de repercutir através dos tempos. Para Deus nada de excluídos, de inimigos, de malditos, de imperdoáveis, de irrecuperáveis. Ele viera não para os justos, mas para os pecadores fossem eles quem fossem. Nada de racismos, de preconceitos culturais ou religiosos. Deus, realmente, oferece sempre oportunidade a todos e todos têm o direito de beber a água viva de sua Palavra e de seu Amor. Naquele encontro histórico tudo ia se revestir de um simbolismo fulgurante e é exatamente o símbolo que nos conduz ao coração do mistério daquele evento. Para os nômades os poços eram bem mais do que poços. Era um lugar de trocas de idéias. Desconhecidos se tornavam ali amigos. Aliás, na Bíblia os poços frequentemente eram lugar onde surgiam casamentos. O poço de Judá onde Jesus estava não escapa a esta tradição alegórica. A água seria a representação figurada da Palavra encantadora do Redentor que iria penetrar fundo na vida daquela samaritana. Ela proclamará depois a seus conterrâneos: “Ele me disse tudo que eu fiz, vinde escutá-lo”. Tratava-se de uma palavra preciosa, mais vivificante do que uma fonte no deserto.  Palavra transformante que mudou inteiramente a existência de uma pecadora que viu saciada sua sede interior. Palavra esclarecedora, pois Jesus fez entrever a adoração do Pai em espírito e em verdade, bem além das querelas de povos e de religiões. Não será, doutrina Ele, nem em Jerusalém, nem no monte Garizim que Deus será verdadeiramente adorado, mas, sim, cada vez que um coração arrependido se voltasse para Ele, buscando sinceramente a Verdade.  Tudo isto tem uma aplicação prática imediata no contexto atual. Hoje, como ontem, Cristo faz jorrar a água viva de sua Palavra numa sociedade paganizada, hedonista, pragmatista. Se o cristão não pode aprovar o erro, ele precisa, porém, sempre compreender aquele que erra. É necessário agir como Jesus fez com a Samaritana e, com perspicácia, saber dialogar para levar o outro para o bom caminho. Quantos samaritanos há por vezes dentro da própria casa, no local de trabalho, nos lugares de diversão,  dentro de cada um que vive em conflitos pessoais contínuos. Muitos até se desesperam e chegam a proclamar que sua vida não vale nada, é uma desordem completa e que Deus não o ama. Jesus propõe a todos a água viva, pois quem dela beber, segundo suas próprias palavras,  nunca mais terá sede. A água que Ele oferece  se torna uma nascente de água jorrante até a vida eterna. Quando as evidências vacilam e as certezas tremem no coração dos irmãos ou no próprio coração e a fadiga desta peregrinação terrestre parece ficar insuportável, é bem que se lembrem as lições deixadas por Jesus à beira do poço de Jacó. Junto dos homens não se encontrará como dessedentar a sede do bem, da virtude, da verdade que borbulha lá no íntimo de cada um. É preciso evitar qualquer mistificação e é necessário não caminhar de decepção em decepção. Cumpre ir sempre ao encontro do Mestre divino. Ele ensinará a amar a verdade, a encontrar no amor, que é Deus, toda felicidade, toda ventura. A Samaritana deve ter ficado atônita diante do que Jesus lhe dizia, mas ela se deixou iluminar pelas suas diretrizes e se fez uma apóstola junto de seu povo. Há no fundo de cada coração o anseio do Infinito, de uma felicidade definitiva que somente Cristo pode saciar. Levemos Jesus por toda parte com palavras e exemplos e estaremos salvando a nós e aos samaritanos que estiverem em nosso derredor.

    * Professor no Seminário de Mariana durante 40 anos.