A Carta a Diogneto, uma descrição da vida dos primeiros cristãos, provavelmente do início da Era Cristã, foi escrita em grande parte com base no paradoxo de que os cristãos estavam no mundo, vivendo como todos os homens e mulheres de seu tempo, mas não eram do mundo, pois tinham uma “cidadania no céu”; obedeciam às leis, mas com sua vida as ultrapassavam; mesmo perseguidos e condenados à morte, amavam os que lhes odiavam.
Seu autor se perguntava: como poderia uma proposta tão paradoxal sobreviver e se difundir, tendo cada vez mais seguidores? Ele mesmo respondia: porque aqueles que vivem desse modo encontram a alegria e a felicidade ao descobrirem-se amados por Deus e tornarem-se participantes de Seu amor no mundo.
Tantos séculos depois, a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate , lançada pelo Papa Francisco, em 19 de março último, retoma essa mesma cidadania, que confunde o mundo, mas enche de alegria a vida daqueles que a abraçam, e que denominamos santidade.
Infelizmente, mesmo entre os católicos, o ideal de santidade tem se perdido porque parece depender de um heroísmo inalcançável, da privação de todos os prazeres e alegrias, de uma bondade ingênua que descamba até para a tolice. Francisco escreve sua Exortação desmentindo todos esses pontos.
Sem dúvida, sua imagem de santidade é heroica, mas de um heroísmo cotidiano, possível a todos. Aquele heroísmo essencial para podermos chegar ao final do dia ou ao momento da própria morte com a consciência de que a vida vale a pena de ser vivida.
Uma santidade que não nos priva das alegrias da vida, mas, pelo contrário, nos faz viver com maior alegria e satisfação. Num mundo em que todos perseguem, sem alcançar, a alegria e a felicidade, Francisco mostra que a rota para ser alegre e feliz está em sentido oposto à que a mentalidade hegemônica quer que trilhemos. Não se é verdadeiramente alegre e feliz num caminho individualista e egocêntrico, mas, sim, pelo contrário, aprendendo cada vez mais a amar o outro.
A bondade do santo não corresponde a uma ingenuidade tola, mas à verdadeira sabedoria, capaz de discernir o sentido das coisas e encontrar o caminho para a realização de cada ser humano e de toda a humanidade.
Na Exortação, o Papa vai “contracorrente”, como diz ao falar das bem-aventuranças. Ser santo implica em se posicionar de um modo radicalmente diferente do esperado em nossa sociedade. Mas esse outro modo de ser traz a real felicidade para a pessoa, constrói a justiça e o bem comum, opondo-se ao poder e à dominação.
Numa sociedade que idolatra a riqueza material, o sucesso individual e o poder, Francisco escreve um texto orientado pela misericórdia, pela humildade, pelo compromisso com os pobres e com os que mais sofrem. Assim, propõem um estar no mundo que muda tanto as pequenas relações interpessoais cotidianas quanto as opções e as condutas políticas que definem nossa participação cidadã.
Gaudete et Exsultate mostra que a santidade é a grande articulação da espiritualidade centrada na misericórdia e na alegria do encontro com Cristo, mostradas na Evangelii Gaudium e na Misericordiae Vultus , com a opção pelos pobres, a defesa do meio ambiente e a acolhida incondicional a todos que caracterizam os escritos mais sociais de Francisco.
Por tudo isso, vale a pena falar dela também numa coluna dedicada à relação entre fé e cidadania. O mundo dificilmente entenderá integralmente sua proposta, mas é um texto fundamental para quem quer ser cristão nos tempos atuais.
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Fonte: Jornal o São Paulo