A felicidade e a liberdade interior com as quais desejamos viver podem estar muito mais relacionadas com a forma como lidamos com a morte do que imaginamos. Perder um ente querido, vivenciar uma enfermidade grave ou acompanhar alguém em seus momentos finais, colocam-nos em contato com uma realidade com a qual comumente vivemos alheios, quase sempre intencionalmente: a finitude humana.
A sabedoria monástica ensina que a grande sacada para viver bem a vida é manter a morte diante dos olhos. Anselm Grün (1998), em seu mais conhecido livro, “O céu começa em você”, diz que São Bento, em sua regra, aconselha os monges a manterem a morte diariamente diante dos olhos pois, para ele, o pensar na morte liberta-os de todo medo “porque paramos de depender do mundo, de nossa saúde, de nossa vida. O pensar na morte também nos possibilita viver e experimentar, conscientemente, cada momento como dádiva e saboreá-la dia a dia” (p. 109). Por ter sempre a morte diante dos olhos, o monge torna-se livre das preocupações mundanas, do julgamento e das expectativas dos homens. A grande expectativa para a qual deve voltar-se é para a vinda do Senhor, ou sua parusia: “A serenidade jovial, a liberdade, a confiança e a sinceridade para o momento presente forjam o monge que anseia pelo Senhor” (p.110).
Grün prossege dizendo que em muitas sentenças monásticas recomenda-se que é necessário primeiro morrer para o mundo, a fim de estar à altura das tarefas que o mundo apresenta, pois quando nos identificamos muito com uma tarefa ou fazemos que nossa autoestima dependa de ser ou não capaz de realizá-la, não podermos realizá-la livremente, pois a fixação em uma tarefa, bloqueia nossa capacidade de execução. “Morrer significa abandonar a identificação com a tarefa. Somente então, eu me torno livre para realizá-la bem. Pois já não depende tudo do fato de como eu a executo”. (p.111)
A identificação e a lembrança da própria morte querem lembrar também que o ser humano torna-se tanto mais livre quanto mais deixar de depender da aprovação dos outros, uma vez que se constantemente depender do elogio dos outros continuará sempre insatisfeito, pois nesse aspecto, o ser humano é insaciável. “O que devemos experimentar é que em nós há uma dignidade divina, cuja existência independe de as pessoas nos elogiarem ou nos repreenderem. Somente a experiência dessa dignidade divina em nós nos torna livres diante do elogio e da repreensão” (p. 113).
Daí, concluímos que não é suficiente apenas se lembrar da própria morte, mas estabelecer uma relação filial e confiante com o Autor da Vida. Nessa vivência íntima e concreta, abrem-se as portas para tocar o infinito e acolher a verdadeira dignidade humana, que consiste em ser filho de Deus.
A simples constatação da própria finitude facilmente pode lançar-nos numa experiência de desespero ou fuga, pois morrer, quer no sentido literal ou existencial, significa desprender-se, e só aceitamos desprender-nos de algo por um sentido maior. Em uma relação com o Ser Infinito, esse movimento de desprendimento vai se aprimorando cada vez mais, em um processo de amadurecimento humano e espiritual. Tal desprendimento vai pouco a pouco tornando-se uma vivência consciente e intencional: de pessoas, de coisas, das visões de mundo e até mesmo da própria vida, pois: “Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (Jo, 12, 24-25).
Na aparente dureza dessas palavras reside o segredo da felicidade e da verdadeira liberdade: perder para ganhar. Estar livre dos medos, das posses, das expectativas humanas. Esse, no fundo, é um desejo autenticamente humano. Ajuda-nos a superar a própria estreiteza e a lançar o olhar para o infinito, pois como afirmava São Paulo: “se é só para esta vida que temos colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima” (1 Cor 15,19).
Dessa forma, iniciar o novo ano mantendo a morte diante dos olhos pode ser um bom caminho para quem deseja vivê-lo autenticamente.
Arte: Sergio Ricciuto Conte
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Fonte: jornal O SÃO PAULO.