Este 4o. domingo é chamado Domingo do Bom Pastor. A Bíblia, herança cultural de um povo nômade e pastoril, apresenta a figura do Pastor como emblema de Deus em relação a nós. Num primeiro momento, este símbolo foi atribuído aos reis e juízes do povo de Israel. O profeta Ezequiel condena a negligência e a perversidade destes pastores que, mais do que cuidar, usavam e abusavam do povo. Por isso anuncia que será o mesmo Deus o pastor do povo: “Eu mesmo cuidarei das minhas ovelhas” (Ez.34). Esta profecia inspirou o Sl 22 (23): “O Senhor é meu Pastor”. O salmo mais popular da cultura bíblica. Jesus identificou-se com a figura do Bom Pastor: “Eu sou o Bom Pastor”.
Até o século IV, depois de Santa Helena, mãe do Imperador Constantino, padroeira dos arqueólogos, ter descoberto a Santa Cruz na qual Jesus foi crucificado, não era este o símbolo e sim o do Bom Pastor, carregando uma ovelha ferida nos seus ombros, o grande símbolo dos cristãos. Recuperar esta representação de Cristo poderia contribuir para o tão desejado diálogo e a paz entre as religiões. Há um Midrash (histórias pedagógicas do povo judeu para comunicar a fé às crianças e ao povo mais simples) onde revela-se que Deus, o Bom Pastor, cuidando do seu rebanho, percebeu que lhe faltava uma ovelha. Foi à sua procura e a encontrou triste e ferida num precipício. Esperou que bebesse água e, colocando-a sobre seus ombros a levou ao seu aprisco. De fato, diz o Talmud (comentários bíblicos dos rabinos) a liderança ou pastoreio não consiste no poder, senão no serviço. Cristo, o Bom Pastor, e Pastor dos pastores, veio servir e salvar o mundo.
Alguns Padres da primeiras gerações cristãs, interpretando a parábola do Bom Pastor, afirmavam que as 99 ovelhas que deixou no aprisco são os anjos que deixou no céu, e a ovelha perdida que veio buscar é a humanidade toda e, por extensão, toda a Criação, feridos pelo pecado e pela morte. Sobre seus ombros, nós e o universo, somos levados ao Reino do Céu, aprisco de Deus.
Alguém disse que não existe nada mais melancólico e elegíaco do que uma ovelha perdida e ferida num riacho. Albert Camus fez eco deste grito angustiante dizendo: “Para um homem como eu, sem pastor e sem dono, que trágica é a vida!”. Nietzsche, após ter declarado a “morte de Deus”, lamentava sua tragédia: “Depois que Deus morreu, quão longa e interminável é a noite!”. Todos os humanismos ateus
terminam tragicamente na presunção de Prometeu a desafiar ilusoriamente os deuses roubando-lhes seu fogo sagrado ou no desespero de Sísifo, vítima da sua “paixão inútil” por conquistar a vida. Esses sábios mitos, que precederam à pretensiosa filosofia e ciências da razão, para explicar nossa problemática existencial, continuam presentes em todas as gerações, pois o ser e a vida, são um mistério além da nossa razão, que pertence a Deus. Não são poucas as pessoas que esperam hoje conquistar o Céu através da ciência, mas um minúsculo vírus desmascara esse nosso otimismo humano, assim como a primeira e segunda guerra mundial quebrantaram os sonhos, curtidos pelo Positivismo científico do século XIX e XX. A deusa razão que foi entronizada em Notre Dame de Paris, acabou reconhecendo sua impotência. Heidegger, em sua tese doutoral “Ser e Tempo” (1927) também recorreu aos mitos para poder encontrar algum sentido ao absurdo duma vida sem Deus. Percebeu o ser humano neste mundo “atirado” (dasein) no tempo, tendo como sua última possibilidade a morte.”O homem-é ser -para-a morte “, dizia. Reportando-se ao mito grego do “Cura” ou Cuidado, como todo ateu, não conseguia morrer de vez racionalmente. Júpiter, deus do céu, pleiteava a posse e domínio do ser humano, mas Gea ou Telle, deusa da terra, reivindicava seu direito, pois o homem foi tirado do barro da terra. Para dirimir esse conflito, o deus Saturno veio como árbitro, dizendo: que o deus Cura ou Cuidado, seja senhor do homem enquanto estiver neste mundo e, após a morte, do seu espírito tome posse Júpiter e do seu corpo Gea. Heidegger não foi muito coerente com esse mito. Somos, diz ele, uma porção de tempo, absoluta precariedade, que precisa todo cuidado para existir, de maneira sempre preocupada. Faltou-lhe conhecer o verdadeiro Cura ou Cuidado que é Jesus Cristo, o Bom Pastor que cuida, guia e concede a vida eterna e feliz que não morre.
“NÃO FOI DADO SOB O CÉU OUTRO NOME (pessoa) AOS HOMENS PELO QUAL POSSAMOS SER SALVOS A NÃO SER JESUS CRISTO” (At.4,8-12)
Foram essas as palavras de Pedro, livre de todo preconceito e idolatria, que nos impedem de ver a verdade, dirigidas ao povo que lhe ouvia em Jerusalém, após ter curado em nome de Jesus Ressuscitado, um paralítico. Por ocasião do milagre da multiplicação dos pães, o mesmo Pedro tinha chegado já a essa
conclusão existencial. O povo o tinha abandonado porque disse ser Ele o Pão da vida para ser comido. Seus mais íntimos discípulos ficaram também perplexos. Então lhes perguntou: “também vocês querem ir embora ?” Pedro respondeu: “E a quem iremos? Só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo.6). Todo discurso, científico, filosófico ou teológico carece de verdade se não tiver uma conclusão. E todo discurso ou saber está relacionado com a vida. “Filosofia é a tentativa ou amizade do saber para resolver o problema da vida”. Não existe nenhuma criatura neste mundo que não procure uma vida imortal e feliz. É seu instinto mais profundo. Mas a conclusão incontestável à qual chegamos, humana e racionalmente, é que a vida que buscamos é meta que não podemos atingir por nós mesmos. “A vida é uma paixão inútil” afirmava Sartre, que só pode ser vivida de maneira autêntica na angústia. Daí a necessidade de um Salvador. Poderíamos viver milhões de anos neste mundo, tentando encontrar a vida, livre do pecado, da dor e da morte, e todos seríamos obrigados a concluir: “Só Jesus Cristo é nossa única Salvação”. Nem sequer a fé, o Deus transcendente das religiões nos basta. O mesmo Abrahão, “pai dessa fé” religiosa, almejou a vinda de Cristo (Jo.8). Ele é “a pedra angular” sobre quem repousa a Criação e a esperança dos povos. “Por Ele foram feitas todas as coisas e sem Ele nada existe” (Jo.1).
O texto desta primeira leitura de hoje repete a exclusividade do seu “nome” (pessoa) como única possibilidade de Salvação. Deus se fez realmente presente em Jesus de Nazaré. Ele é o “universal concreto” do universo. Por isso, não só disse aos seus discípulos, como também para todos os povos: “Vocês creem em Deus, creiam em Mim, pois Eu e o Pai somos Um”(Jo.14). Sao descartados todos os deismos. Nosso único Deus é o Deus de Jesus Cristo, sua mesma pessoa histórica (Jesus de Nazaré), morto e Ressuscitado em Jerusalém no tempo de Pilatos. A distinção entre o Jesus histórico e o Jesus da Fé, que a teologia ultimamente tem feito, não favorece a certeza da nossa Salvação e a divindade de Cristo. Por ser Deus feito homem, assumindo nossa natureza humana e, em nós, o mundo criado, tudo existe e vive Nele. O profeta Zacarias (sec. VI a.C) teve essa iluminação cristocêntrica de Deus, anunciando que todos os povos viriam adorar a Deus em Jerusalem e “agarrariam o manto de um judeu dizendo: queremos ir contigo, pois Deus está contigo” (Za. 8,23). Ele é o perfeito acabamento da plenitude do ser e da vida.
“JÁ SOMOS FILHOS DE DEUS, MAS AINDA NÃO SE MANIFESTOU O QUE SOMOS” (1Jo.3,18-24)
A Salvação transcende toda grandeza e milagre. É essencialmente pascal: corrige o errado, preenche os vazios, supera o justo e nos faz ser e viver em Deus. Aparentemente, depois de Cristo ou com Cristo, tudo parece continuar igual: dor, pecado e morte nos acompanham. Nada mais estranho e absurdo do que dizer a um paralítico ou agônico que é “filho de Deus”. Só pela Fé podemos vislumbrar essa paradoxal grandeza: temos tudo e, ao mesmo tempo, nos falta tudo. Somos, mas ainda não se manifestou o que de fato somos, ou seremos, afirma Såo João. Somos milionários na maior indigência. Nos movemos na ponte entre o nada e a morte e o ser e a vida, certos, pela Fé, de poder cruzar esse abismo em Cristo Ressuscitado.
A prova de que Deus nos ama, diz São João, é que somos chamados “filhos de Deus”. Quando essa realidade divina se manifestar seremos “semelhantes a Ele”. Nossa Fé fica pequena se apenas esperamos ir ao Céu como hóspedes. De fato, só divinizados, filhos de Deus, podemos ser felizes. Felicidade, afirma Santo Agostinho, é a posse de todo bem de maneira permanente. O bem total, só pode ser Deus, e não para ser contemplado, como pensava Santo Tomás de Aquino, mas para ser e viver nele. A Trindade tem uma quarta pessoa em Cristo, Deus Pai, Filho e Espírito Santo e nós, com todos seus anjos, e toda a Criação inseridos em sua divindade. “Tudo será Deus” diz o Apocalipse. No infinito de Deus tudo cabe sem limites. No seu insuportável e inquieto ateísmo, o
filósofo espanhol Unamuno, dizia: “Homem me tens feito, ó Deus, nada mais que um homem, mas dentro de mim arde um fogo de diamante, todo um Deus”. Não era Unamuno que falava, mas Deus nele.
EU SOU O BOM PASTOR QUE DÁ A VIDA POR SUAS OVELHAS(Jo.10,11-18)
Neste mesmo capítulo, Jo.10,8-10, Jesus qualifica a todos os pastores que vieram antes Dele de “assaltantes e ladrões”. E o ladrão, disse, vem para roubar, matar e destruir. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo.10,10). Até o número 10 , símbolo de toda plenitude, duas vezes repetido, situa nos Evangelhos essas sublimes palavras para jamais serem esquecidas. O texto ratifica a exclusividade da Salvação em Cristo da primeira leitura.
Ao longo da nossa vida pessoal e da história dos povos, são muitos os Cristos ou Messias que nos prometeram a vida. Pessoas, ideologias, coisas, conquistas, projetos e sonhos criaram em nós a falsa expectativa de um paraíso terrestre. Roger Garaudy, confesso marxista que alimentou esse sonho na “Grande Tarde” (paraíso) que o Comunismo lhe prometia, certo dia despertou dessa trágica alienação dizendo: “De que me serve esperar esse paraíso se eu mesmo ficarei apenas às suas portas?”
Ao menos, por um processo de descarte, teríamos de chegar à nossa única conclusão existencial: Só quem tem a Vida a pode dar. E a única fonte da vida é Deus, a nós dada em Cristo, que tendo-nos amado, nos amou até o extremo (Jo,13,1). E o amor não pode deixar ninguém no cemitério. O amor postula a imortalidade. O amor jamais afogará os oceanos . “Ele é eterno ou não é amor”(Can’t.8,7). O eminente teólogo francês De Lubac disse: “nada mais absurdo do que, sendo a morte tão certa, não acreditarmos na Ressurreição de Cristo”. “Meu Pai me ama, disse Jesus, porque dou minha vida para retomá-la”. Cristo nos diz constantemente: “Com amor eterno eu te amei. Ninguém te ama como Eu”. Por isso, além de Pastor a cuidar de nós, Ele é o Cordeiro a dar Sua Vida Divina a todos nós.
“TENHO OUTRAS OVELHAS QUE NÃO SÃO DESTE APRISCO QUE DEVO CONDUZIR TAMBÉM E HAVERÁ UM SÓ REBANHO E UM SÓ PASTOR”
Alguns biblistas têm querido ver nestas palavras de Jesus a possibilidade de existirem outros entes “humanos” ou semelhantes a nós, em outros planetas, também chamados a serem salvos e glorificados por Cristo. Mas o contexto Evangélico não sugere isso. Jesus disse ter vindo para as ovelhas de Israel na Sua missão profética, embora aberto a todos os povos, por isso atendeu o pedido da cura da filha de uma mulher cananéia. Depois da Ressurreição, enviou Seus discípulos para levar Sua Salvação ao mundo inteiro e, nessa missão, Ele estaria acompanhando-os. “Sabei que eu estarei com vocês até o fim dos tempos”. A exclusividade salvífica de Cristo, e sua divindade em Jesus de Nazaré, implica afirmar que só este planeta Terra é portador da vida e só neste Planeta Deus está conduzindo o universo à sua transformação gloriosa, sendo o ser humano seu grande mediador em Cristo. Se houvesse vida fora da terra, a Lua a teria, pois ela é uma porção de terra desprendida há 4 bilhões de anos. Os astronautas levaram 500 sementes para ali plantar e tiveram de retornar para seu único berço vital, que é a terra. Ironicamente, essas sementes, neste nosso chão, brotaram e as chamaram “árvores da lua”. Por estes dias pudemos ver um pequeno helicóptero voando, inerte e sem sangue, sobre o planeta Marte. O pessoal da NASA aplaudia eufórico essa aventura. Grandiosa de fato, mas para os que esperam encontrar vida fora da Terra, economizam tempo se confessam ser Cristo tudo quanto Deus teve a nos dizer e dar. Ele é a Roca ou “Pedra angular” do universo e também a fonte da única e verdadeira vida. Lembro que na década de 1970, houve um boom de ovnis em São Paulo. Muitos viram discos voadores e alguns até tiveram contato com extraterrestres. Na época, eram chamados marcianos. Hoje fomos eletronicamente a Marte e ali vimos que o silêncio e a ausência é total. Para quem se questiona sobre a razão de existirem mais de 500 milhões de galáxias e trilhões de estrelas e sistemas planetários, diremos que sua existência é justificada, como nos revela o salmo 8, porque “narram o poder e a Glória de Deus”, a ser proclamada pelo ser humano em nome de toda a Criação.
“HAVERÁ UM SÓ REBANHO E UM SÓ PASTOR”
Da mesma maneira que a ovelha precisa de um pastor, pois é o único animal incapaz de se conduzir por si mesmo e por isso foi o primeiro a ser domesticado pelo homem, também ela precisa de um rebanho. Ela é essencialmente gregária. Aplica-se esta simbologia à nossa identidade humana e cristã. Somos essencialmente seres sociais. Uma pessoa antisocial sofre uma doença mental chamada esquizofrenia.
Aristóteles dizia: uma pessoa não social ou é Deus ou uma besta. Mas o mesmo Deus é Trindade e as bestas vivem em famílias. Também nossa Fé é social. Não podemos ter a Deus por Pai se não temos a Igreja por mãe, afirma Santo Agostinho. Cristo condicionou sua presença “onde duas ou mais pessoas estão reunidas em seu nome” (Mt.18). O Pai Nosso é rezado no plural. O Concilio Vaticano II chamou a família de “Igreja doméstica”. Mas só o será se essa família ou pequeno rebanho tem a Cristo como seu pastor.
“O SENHOR É MEU PASTOR, NADA ME FALTA… SEU BASTÃO E SEU CAJADO ME DEIXAM TRANQUILO” (AsL.22)
Ele me conduz e restaura minhas forças. E ainda que passe pelo vale da morte, nenhum mal temerei, pois está comigo. Minha morada é a casa do Senhor por dias sem fim. Esta idílica oração ao Bom Pastor é acompanhada de dois eloquentes símbolos que nos ajudam a viver nossa Fé neste mundo, ainda sujeitos a perigos. Nosso Pastor, o mesmo Deus em Cristo, leva uma vara ou bastão para nos “corrigir” amorosamente e também para nos defender frente aos nossos inimigos. O cajado, vara encurvada, com a qual o pastor ergue a ovelha caída no precipício, representa Sua Misericórdia, a garantir nossa Salvação.”Felicidade e amor me
seguirão todos os dias da minha vida” Que o Senhor revele a todos neste domingo Cristo como nosso único, bom e verdadeiro Pastor a cuidar e Salvar nossas vidas e, na pequena Comunidade, seu próprio rebanho.
Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)