Segundo o Concilio Vaticano II (GS.37-38), a Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré é um Mistério pascal que faz passar da morte à vida toda realidade humana e cósmica, libertando-a de todo mal e levando-a à
sua plenitude em Cristo Re ssuscitado. Deus se fez homem, incorporando-se existencialmente ao dinamismo da História. A expressão “e o Verbo se fez carne”, significa se fez histórico, o acontecer espaço-temporal da Criação e, particularmente, do ser humano, até atingir o infinito eterno, que é Deus. Em Cristo realiza-se a Páscoa de nós e do universo. Pelo fato de ser verdadeiramente homem, é inteiramente solidário aos nossos pecados, nossas dores à e morte. E por ser ao mesmo tempo Deus,
ele seremos vitoriosos e gloriosos.
Em Cristo, afirma São Paulo em Col. 2,15, temos empreendido viagem “em cortejo triunfal” à plenitude do ser e da vida. Nessa triunfante procissão, encabeçada por Cristo ressuscitado, o ser humano caminha ao seu lado até findarem as gerações. A seguir, desfilam todas as criaturas do universo que habitamos. De fato, tudo foi criado para o homem, o homem para Cristo e Cristo para Deus (Col.3). Esta é a ordem do plano da Salvação de Deus.
O tempo da Páscoa não são 50 dias a culminarem no acontecimento de Pentecostes, mas a mesma estrutura do mundo criado, chamado a ser transformado em Cristo ressuscitado. Quem tiver esta leitura pascal, entenderá o sentido da propria vida e do acontecer da História. De outra maneira, será semelhante ao helicóptero a voar solitário em Marte no silêncio do nada.
A história da Salvação não é cíclica mas linear. O grande erro ao interpretar a ação salvífica de Cristo consiste em desvincular sua Ressureição de nossas vidas e da criação. Desde a óptica darwiniana, diríamos ser Cristo o grande e definitivo “mutante” da evolução. Ele é a última etapa da História ou, como afirmava McLuhan, “a última extensão do ser humano” e também do universo. Crer em Cristo ressuscitado é sentir-se antecipadamente imortal e glorioso, embora tenhamos de esperar na fila das gerações e no rio do tempo, passando pela porta estreita do pecado, da dor e da morte, até ser consumada a
Páscoa no grande Pentecostes do Espírito Santo, plenitude do ser e da Vida.
Na presente condição espaço-temporal, há três problemas existenciais que carecem de resposta racional: a morte, o pecado e o sofrimento. Desses problemas nasceu o pensar profundo do ser humano. Historicamente, foi o povo do Egito o primeiro a problematizar racionalmente a morte. Já desde o nascimento, as pessoas tratavam de vencer a morte, construindo suas pirâmides e mastabas para garantir sua vida futura.
Os cemitérios são os sonhos vivos dos mortais. Do drama do pecado, nenhum povo tomou maior consciência do que o povo de Israel. São Paulo se fez eco desse drama dizendo: “Quem me libertará deste corpo de pecado?” (Rm.7) Só terá a resposta na graça de Cristo.
O sofrimento questionou a existência do povo da Índia, problematizando-o ainda mais, atrelado-o ao incessante encadeamento de reencarnações que o Karma exige. O povo da antiga Grécia, bem mais tarde, problematizou o mesmo ser das coisas e da existência humana. Por que há ser e não nada? E encontrando no ser das coisas morte, pecado e sofrimento, idealizou um mundo desencarnado, pura ideia ou espírito, sem coisas. Kant considerou esses mesmos problemas existenciais no seu próprio agir interior questionando-se: Que posso saber? O que posso fazer? Que posso esperar? Diante desses problemas insolúveis, confessou: “Tive de deixar a minha razão para dar lugar à fé.” De fato, a razão carece de respostas aos grandes problemas da vida: Por que morremos, somos bons e sofremos? Kant acrescentava a esses três problemas um quarto: Que sentido tem a existência de 500 milhões de Galáxias compostas de trilhões de estrelas e planetas? Essa imensidão, problematiza ainda mais a penúria e miséria do ser humano e até do próprio Deus. Porque o ser e a vida neste mundo são problemáticos é que temos necessidade que Deus nos fale e responda.
O grande teólogo americano Tillich diz que Deus nos fala na medida em que lhe perguntemos. E Bultmann, anglicano, considera que a única interpretação possível da Biblia é existencial, isto é, desde a experiência da existência problemática.
Temos mais perguntas do que respostas, mas são nossas perguntas nossa melhor resposta, pois nos abrem à esperança da nossa Salvação. Essa é, diz Moltmann, nossa única e verdadeira sabedoria.
PEDRO SE DIRIGIU AO POVO DIZENDO: “ENQUANTO FAZÍEIS MORRER O AUTOR DA VIDA, DEUS O RESSUSCITOU DOS MORTOS”( At. 3,13-19)
“Só temos um problema”, afirma o maior pensador espanhol do século XX, Unamuno, “e se morremos, tudo é absurdo”. E acrescentava como ateu confesso: “Morro, mas não posso (não consigo) morrer”. De fato, racionalmente, é impossível morrer, pois o instinto de vida é mais forte do que a morte. No entanto, existencialmente, na nossa maneira de ser neste mundo, experimentamos a vida como mortal. Por isso, a vida é essencialmente problemática e, humanamente, carecemos de resposta. A vida, disse Sartre, só pode ser vivida na angústia ou de maneira trágica. A única resposta que Deus nos deu foi a Ressurreição de Cristo. Nenhuma reencarnação resolveria o problema da morte, pois estaríamos fadados a morrer constantemente. E um reino de almas, desencarnados, como pensou Platão e maiormente até nossos dias o povo ocidental, nos concederia, depois da morte, sermos nós mesmos. Os Apóstolos, testemunhas oculares da morte e da Ressurreição de Cristo, lançaram-se ao mundo a anunciar esta grande e singular notícia, que desproblematizava a existência humana e dava sentido ao mundo criado. A evangelização, tarefa que Cristo incumbiu aos seus discípulos realizar, consistia em fazer um “pregão” (kerigma) como antigamente se fazia nas praças dos povoados para comunicar uma notícia, dizendo: “Cristo Ressuscitou. A morte foi vencida”.
Para nós, os que experimentamos a vida como uma luta contra a morte, nenhuma outra notícia poderia ser mais importante e necessária.Resta a quem ouve essa notícia acreditar realmente. Na carta aos Coríntios, São Paulo dirime uma dúvida que muitos dos que foram evangelizados e ouviram essa notícia, tinham: Cristo Ressuscitou, mas e nós, pessoalmente?… Nossos entes queridos são sepultados no cemitério e também nós o seremos. São Paulo responde : “Se nós não ressuscitamos, também Cristo não Ressuscitou . E se Cristo não Ressuscitou, vazia e vã é nossa fé”.
Ficariamos de novo no absurdo da morte. Esta dúvida ou questão existencial a respeito da nossa
Ressurreição pessoal, nasce de não crer no mistério da Encarnação. Deus não se fez verdadeiramente homem. Continua no Céu, separado de nós, a quem podemos invocar para receber algum benefício ou proteção e, se merecermos, quem sabe, uma vida após a morte, mas não uma vida divina. Mas se cremos que Deus “se fez carne”, solidário na nossa condição de pecado, dor e morte, Cristo não poderia Ressuscitar sem nós e
nós não poderíamos Ressuscitar sem Ele. Daí que, como comentado no domingo anterior, o grande emblema da Fé cristã, segundo Von Balthasar, é o Círio Pascal: uma chama viva que arde consumindo a cera inerte (nossas mortes) com uma cruz marcada com cinco cravos ou chagas, a mostrar-nos que a
Ressurreição passa necessariamente pelo pecado, sofrimento e pela morte, em cujo drama Cristo, mesmo Ressuscitado, continua sofrendo-o em nós até o fim dos tempos. Enquanto ele morre em nós, Deus o Ressuscita e, com Ele a nós. Seria salutar para nossa Fé termos o Círio Pascal (nas Paulinas vendem) de Páscoa em Páscoa, ficando aceso nas nossas orações…
Os símbolos são a linguagem da alma e são mais eloquentes do que as palavras.
“SE ALGUÉM PECAR, TEMOS COMO ADVOGADO, JUNTO AO PAI, JESUS CRISTO, VÍTIMA DE EXPIAÇÃO PELOS NOSSOS PECADOS” (1Jo.2,1-5)
Se a morte é nosso grande handicap, o pecado é maior ainda. Nossa vida imortal de Ressuscitados seria infeliz se nos acompanhasse a culpa e o pecado. Todos deixaremos este mundo na condição de pecadores, pois “só Deus é Santo”. São João, usando uma linguagem humana, que ainda que tivéssemos de comparecer diante de Deus como Juiz, como fomos doutrinados, para prestar contas de nossos atos, temos como Advogado o mesmo Cristo a nos defender. A vítima, que foi Ele, defende seus verdugos que somos nós. Mais ainda, o mesmo Juiz, Deus Pai, está a nosso favor, pois, tendo-nos amado, entregou seu próprio Filho na morte de cruz, para recebermos dele sua Vida. Em Jo.16, se nos revela que além de Cristo teremos outro advogado a nos defender: o Espírito Santo. O pecado, mal e inimigo que não podemos vencer, que problematiza nossa vida pessoal e social, pois, mesmo querendo, não nos permite realizar-nos e sermos bons, tem como resposta não, precisamente, na morte de Cristo, como pensou Santo Anselmo (sec. XI) pela qual “pagou” a Deus pelos nossos pecados, mas na Ressurreição, que nos faz em Cristo santos como Deus é Santo.
“ASSIM ESTÁ ESCRITO QUE O MESSIAS DEVIA SOFRER E RESSUSCITAR DOS MORTOS AO TERCEIRO DIA” (Lc. 24,35-48)
A morte e o pecado até poderiam ter alguma explicação racional, embora não uma solução humana, por isso problematizariam nossa vida. Mas, o sofrimento, é considerado na filosofia o “problema limite”,
isto é, a razão para diante desse problema sem encontrar resposta. A morte é, diz o povo, “a lei de vida”. Seria impossível a vida dentro da corporeidade. Não haveria espaço habitável suficiente para todas as gerações.
Para os entes vivos não dotados de consciência, a morte deixa de ser problema. A resposta do marxismo materialista de prolongar a vida na nossa descendência como os animais, seria nossa maior alienação. O filósofo marxista Roger Garaudy percebeu esse engano e disse: “Que adianta que eu lute para que meus filhos tenham um paraíso no futuro se eu mesmo fico nas suas portas?” A morte é, pois, nosso grande problema ao qual só a Ressurreição responde. O problema do pecado também admite uma explicação, mas não uma solução racional. Uma boa educação e o exercício das virtudes são uma resposta. Mas o problema do sofrimento que nos ocupa neste estreito caminho
carece de toda lógica e explicação. Por que sofremos? O livro de Jó levanta esta questão sem encontrar resposta. E mesmo perguntado insistentemente a Deus, sem receber resposta, teve de confessar ter sido insensato e questionar esse problema, pedindo a Deus desculpas por ter lhe perguntado. E confessa: “Reconheço, Senhor, que podes tudo. Que eu falei (perguntei) de coisas superiores a mim. ” (Jó.42)
Jó reconhece que Deus não tem por que explicar o porquê do sofrimento, também por que o ser humano não saberia entender suas razões. Cristo limitou-se a dizer: “Assim está escrito (plano salvífico de Deus) que o Messias devia sofrer e ressucitar”. Neste mesmo capítulo, no diálogo que Jesus teve após sua Ressurreição com os discípulos de Emaús, afirma que “era necessário sofrer”. Nao por isso, somos masoquistas. Aliviar e evitar o sofrimento é também um outro sofrimento. O que repugna não só à razão como também à Fé, é que seja um castigo, uma prova, purificação e, menos ainda, um pagamento ou indenização pelos nossos delitos. Eu reformularia o problema imaginando a Deus no leito, sofrendo um doloroso câncer ou doença incurável. O que você diria a Deus? Teria pena dele e pronunciaria palavras de consolo? Não ficaria “admirado” e preferiria ficar com a pergunta ou questão do sofrimento, pensando que a vida tem uma finalidade superior a nós mesmos e que só Deus sabe?
Se Deus sofre em Cristo é porque o sofrimento é passo e caminho necessário para uma Vida Eterna e feliz.
AS APARIÇÕES DE JESUS RESSUSCITADO
Nestes domingos da Páscoa, os Evangelhos nos reportam que Jesus “apareceu” aos seus discípulos depois da sua Ressurreição.
No Evangelho de hoje encontramos até que comeu com eles. Fato física e historicamente impossível, pois uma pessoa Ressuscitada, assim como Deus, é invisível, pois está fora do espaço e do tempo, coordenadas de toda representação sensível e mental.
A Ressurreição é meta-histórica, não pertence a este mundo, embora esteja presente nele. As aparições de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim como da Virgem Santíssima, de anjos ou de santos, que, ao longo da história do cristianismo, tem acontecido e podem acontecer, são apenas manifestações da Sua presença real, mas não como de fato são na Sua nova condição de Ressuscitados no Reino de Deus.
Jesus teve de se manifestar assim, quase que fisicamente, inclusive nem deixou seus restos mortais no cemitério, para tornar o fato mais real a revelar aos Seus discípulos que, pela Ressurreição, seremos nós mesmos, a viver eternamente com Deus.
Não haverá reencarnação, desencarnação, nem tempo de espera. Passaremos ao Reino dos
Céus, sem dor, pecado ou morte, glorificados como filhos de Deus.
As aparições são o que chamaríamos de uma “graça estética” (sensível) que Deus nos brinda para nós ajudar a crer como humanos.
Todos nos podemos participar desta graça sensível, toda vez que recebemos Cristo feito pão e vinho na Eucaristia. “Tocamos” o mesmo Cristo Ressuscitado.
“A Fé é a maneira de ter o que esperamos e o meio de ver ou conhecer o que não vemos” (Hb. 11,1).
Habermas, filósofo alemão de nossos tempos, afirma ser a fé o resultado da história da razão que articula o que nos falta. E o que nos falta é Deus. A Fé é a viagem do ateísmo do nosso nada ao infinito real do Deus eterno.
Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)