O segundo capítulo da encíclica sobre a amizade e a fraternidade social, que desafia o mundo a experimentar “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo (56)” tem por base a mais enigmática das parábolas que o Mestre nos contou. A história do Bom Samaritano “é expressa de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela (id)”, independentemente das suas convicções religiosas, diz o Papa.
O desafio da mensagem está na conclusão do evangelista que a pormenorizou: “Vai e faz tu também o mesmo” (Lc 10, 25-37), depois da grande pergunta comum a qualquer ser humano: “Mestre, que hei de fazer para possuir a vida eterna”. Francisco nos lembra ser esta a perspectiva de fundo dos grandes dilemas existenciais e cita o sábio Hillel, cujo preceito está bem formulado em Mateus (7,12): “O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas”. A história hebraica nos fornece esse apelo de fraternidade. “Como motivo para alargar o coração a fim de não excluir o estrangeiro, invoca-se a memória que o povo judeu conserva de ter vivido como estrangeiro no Egito (61)”. As cicatrizes do passado lembram suas dores e estas reascendem com desejos de vingança.
“Foi por alguma razão que, perante tentação das primeiras comunidades cristãs criarem grupos fechados e isolados, São Paulo exortava os seus discípulos a ter caridade uns para com os outros ‘e para com todos’ (62)”, pois a fé cristã exige a abertura para o mundo, porque “ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá”. Perder tempo com o decaído, o marginalizado, o ferido na estrada não é uma tarefa que agrada. Antes, “não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios (65)” e aí está uma história que se repete em qualquer sociedade, independentemente de sua fé. “Hoje, há cada vez mais feridos. A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos (69)”. Aqui Francisco coloca o dedo na ferida de todos nós. E sentencia: “Nos momentos de crise, a opção torna-se premente; poderíamos dizer que, neste momento, quem não é salteador e quem não passa ao largo, ou está ferido ou carrega aos ombros algum ferido (70)”.
Mas acontece que apenas um, representante de um povo estigmatizado e também sofredor, se dispôs a ajudar. “O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes (74)”. Eis nosso dilema. “Ao engano de que ‘tudo está mal’ corresponde o dito ‘ninguém o pode consertar’ (75)”. Isso é o que chamamos de politicagem dos acomodados. “Deixemos que outros continuem a pensar na política ou na economia para os seus jogos de poder. Alimentemos o que é bom, e coloquemo-nos ao serviço do bem (77)”. Aqui Francisco desafia o mundo a construir uma corrente de Amor. “Mas que não o façamos sozinhos, individualmente, pois “nós estamos chamados a convidar outros e a encontrar-nos num ‘nós’ mais forte do que a soma de pequenas individualidades (78)”.
“Jesus propôs esta parábola para responder a uma pergunta: ‘Quem é o meu próximo?’ (Lc 10,29). A palavra ‘próximo’ na sociedade do tempo de Jesus costumava indicar a pessoa que está mais vizinha, mais próxima. Um samaritano “não estava incluído entre o próximo a quem se deveria ajudar (80)” Essa atitude de exclusão social é o mal maior das sociedades que se dizem progressistas, dinâmicas, modernas. Até a comunidade cristã já agiu assim, quando se beneficiou do sistema escravocrata e “várias formas de violência” para impor a fé. Muitos religiosos ainda passam ao largo sem um “mea culpa” para “amar e acolher a todos (86)”