Não tenho samba no pé, nem veia carnavalesca. Não resisti, porém, ao apelo da curiosidade e me plantei frente à TV, nas altas horas da antevéspera desse Carnaval 2017. Como muitos, também estava motivado pelo apelo midiático de um desfile com a “bênção” da Igreja e a “presença” da Mãe. Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, seria homenageada durante o desfile da Escola de Samba Unidos da Vila Maria, em São Paulo, que lembraria os 300 anos dessa devoção mariana em terras tupiniquins. Como unir uma festa “da carne” a um tema estritamente espiritual? Assim dividido, aguardei.
Eis então que o rufar dos tambores e o grito de guerra da ansiada escola se fez ouvir: “Pedi aos céus para iluminar essa jornada, seguir com fé, na caminhada.” Os primeiros acordes do belo samba-enredo ecoaram como brado do povo. A emoção tomou conta. Um samba em forma de oração, que jamais se ouviu nas passarelas carnavalescas, vai aos poucos impregnando a alma de todos. A replica de uma imagem gigantesca de Maria da Conceição, a reinar soberana na passarela, desaparece como por encanto, dando lugar à mais estranha procissão de fé que esse país já viu. “Virgem Conceição imaculada, os teus feitos vão se revelar, num choro incontido, o nó na garganta, a história marcada em devoção”. Caem por terra as últimas resistências que ainda turvavam meu coração zeloso com as coisas de Deus. Eis que o povo faz desfilar sua fé de uma maneira serena, respeitosa, extremamente bela!
Então o Verbo se fez Carne. Não foi este o maior milagre da Mãe? Por que então impedir sua presença em meio às massas de devotos a lhe prestar aquele tributo especial, numa festa da carne? Como bem afirmou o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, “não somos donos da fé do povo e a história de Aparecida pertence ao povo brasileiro, não à Igreja”. Não havia porque impedir tão justa e oportuna homenagem, nesses trezentos anos de incontáveis manifestações marianas dentre nós, em especial através da imagem daquela que elevamos à condição de “padroeira”, a rainha do Brasil. Não seria a Igreja a dona desse privilégio, a gerente-mor desses “300 anos de amor e fé no coração do povo brasileiro”, como bem lembrou a organização daquele desfile.
A bem da verdade, devo dizer: nosso catolicismo, com todo seu respeito e devoção, seria incapaz de produzir tamanha homenagem e tributo de fé como o primoroso espetáculo que presenciamos naquela passarela. Nada maculou a devoção cristã. Ao contrário, foram muitas as manifestações de apreço e respeito que ali se ouviu, até por parte de ateus e evangélicos ou mesmo seguidores de outras crenças e devoções. Maria reinou absoluta. Maria cativou a todos. Maria foi honrada e respeitada de uma forma extraordinariamente bela, pois, pela primeira vez na história carnavalesca desse País, uma escola de samba desfilou sem aberrações, sem nudismo, sem a sátira apelativa à sensualidade que é peculiar nessas ocasiões. A fé inundou os barracões da comunidade carnavalesca. Antes e depois de cada ensaio todos, de mãos dadas, rezavam uma “Ave Maria”, confessou um integrante da Escola. Seus integrantes traziam no peito uma imagem da Santa. O barracão introduziu em lugar de destaque uma réplica da imagem de Aparecida. O carnavalesco Sidnei França sentiu a força mística dessa escolha desde o princípio e pontificou desde então: “A única rainha é Nossa Senhora. Assim será também na avenida…” E o samba- oração então proclamou: “Vila Maria abençoada vem pedir/pátria mãe gentil/Não deixe de exaltar a padroeira/ pro bem do meu país/ nos dê a paz bendita e verdadeira/aos teus pés vou me curvar/Senhora de Aparecida”.