Quando o cardeal alemão Joseph Ratzinger, responsável pela área de Doutrina e Propagação da Fé dentro da Igreja Católica, foi proclamado Papa, em 19 de abril de 2005, um clima de preocupação tomou conta de grande parte do clero no mundo. Estava no auge, especialmente nos países latino-americanos, a corrente doutrinaria conhecida como Teologia da Libertação, da qual o cardeal tornou-se crítico ferrenho, colocando em “silencio obsequioso” vários teólogos da berlinda, dentre os quais seu aluno “dileto”, o brasileiro Leonardo Boff. As trocas de farpas entre ambos eram conhecidas de todos, mas agora ter um papa como oponente nas ideias teológicas era ter um opositor de peso. Levou anos para se serenar esse conflito teológico, porém venceu a genialidade e extraordinária clareza ideológica do velho e bom professor.
Bento XVI, como escolheu ser chamado, assumiu seu pontificado com a mão forte de alguém que bem conhecia o terreno onde pisava. Comandou por oito anos o rebanho de Cristo, com firmeza e determinação sem precedentes dentro da guerra ideológica que quase dividia a Igreja na época. Dizia em sua clareza pastoral:” Se alguém criticar a Igreja, não silencie… Defenda-a com coragem, pois ela é nossa Mãe”. E assim o fez durante seu pontificado, até que, num gesto de abnegação extremada, renunciou! Como assim? O primado de Pedro não é vitalício? Estaria ou não se contradizendo em seu ministério, se perguntavam seus seguidores e os grandes historiadores da era cristã. Houve já casos similares na história da Igreja, mas isso não seria omissão?
O tempo nos provou a genialidade desse gesto. Sentindo suas forças se esvaírem e as limitações temporais impedirem maiores audácias em suas ações de líder maior do rebanho de Cristo, nada mais justo que ceder espaço a alguém com maiores vitalidades. Não seria justo continuar ocupando aquela cátedra quando o governo de um rebanho exigia mais lucidez e dedicação integral. Renunciou, sim, mas ficou na retaguarda. Como bem disse recentemente seu sucessor, o Papa Francisco: “O silêncio de Bento XVI é que tem governado a Igreja”. Seu silêncio e suas orações.
Tão verdade essa afirmativa, que, ao completar seus 95 anos, em 18 de junho de 2022, em Munique, Alemanha, o Papa Bento comentou sobre essa sua “missão” orante pela Igreja, centro de suas preocupações e intercessões junto a Deus. Falava a seu secretário dessa sua constante preocupação, apesar de sentir a proximidade de seu fim terreno e pedir a Deus que abreviasse seus dias. Ansiava por um encontro com seu Senhor. Deixou então escapar uma afirmativa bem pessoal: “Nunca teria acreditado que seria tão longa a última parte do caminho” … Só mesmo uma alma sedenta de um encontro definitivo seria capaz de formular tão estranho, mas suave desejo!
Esse foi Bento, o Papa que perdemos no limiar desse ano de muitas luzes e trevas, muitas esperanças e decepções, muitas derrotas e conquistas… Bento XVI, o Bentinho para alguns que se sentiam intimo pela sua pureza e simplicidade, mas o Ratzinger temido e respeitado por aqueles que se arvoravam em suas teologias e dogmas doutrinários, o alemão que abriu mão de seus carismas e poderes dentro da Igreja institucionalizada, para ser somente uma voz orante, deixou-nos um testemunho questionador ao escrever recentemente, quase as portas de sua morte: “Em breve me encontrarei diante do juiz supremo. Embora olhando para trás em minha longa vida eu possa ter tantos motivos para tremer e temer, ainda assim estou com o coração feliz porque confio firmemente que o Senhor não é apenas o juiz, mas ao mesmo tempo o amigo e irmão que já sofreu ele mesmo minhas insuficiências e, portanto, como juiz, é ao mesmo tempo meu advogado”.