O Evangelista dos domingos do ano C

    Iniciamos mais um ano litúrgico. O centro do ano litúrgico que estamos iniciando pode ser assim resumido: o rosto misericordioso do Pai.

    Como forma de organizar o material, São Lucas coloca no centro do seu Evangelho o rosto misericordioso de Deus (cap. 15). Se Jesus conhece e revela o Pai, revela-o especialmente como um Deus de infinita misericórdia.

    A divisão litúrgica do tempo não coincide exatamente com o calendário civil. Na liturgia cristã-católica, o ano começa com o primeiro domingo do Advento, período de preparação para o Natal. Entre os evangelhos sinóticos, o ano litúrgico “C” nutre-se da narrativa do evangelista São Lucas. Este não conheceu Jesus diretamente e, segundo os estudiosos, teria nascido em Antioquia. Convertido ao cristianismo, torna-se depois companheiro de Paulo, em suas viagens pastorais.

    Sendo médico de profissão, na sua organização dos eventos transparece uma certa sensibilidade para com os doentes e indefesos, os pobres e pecadores, os marginalizados e excluídos. Em seus relatos, segue de perto Marcos e Mateus, as imprime um estilo notoriamente mais elegante. Além do Evangelho, dividido em 24 capítulos, escreve depois o livro dos Atos dos Apóstolos, este último com 28 capítulos. No sentido de acompanhar melhor a liturgia do ano que começa, vale a pena sublinhar algumas características do Evangelho de Lucas.

    Primeira característica do Evangelho: a salvação é universal. De acordo com sua condição de convertido, e tendo sido companheiro de São Paulo, Lucas transmite uma visão da Boa Nova do Evangelho que se estende a todos aqueles que confessam crer em Jesus Cristo. O projeto divino da salvação dirige-se não somente ao povo de Israel, mas a todas as pessoas, povos e nações. Rompe decididamente com o forte nacionalismo judaico do Antigo Testamento, alargando os horizontes da salvação ao mundo inteiro. Seguindo a visão do chamado apóstolo das gentes, descortina de forma indistinta a mensagem evangélica.

    Segunda característica: o rosto misericordioso do Pai. Como forma de organizar o material, Lucas coloca no centro do seu Evangelho o rosto misericordioso de Deus. Se Jesus conhece e revela o Pai, revela-o especialmente como um Deus de infinita misericórdia. Esta dirige-se, com particular atenção, aos mais abandonados e necessitados, não raro condenados pelos escribas, fariseus e saduceus com a tríplice e recorrente acusação de pobres, doentes e pecadores. A caravana de Jesus jamais atropela uma dor, um grito de socorro ou qualquer forma de abandono. Jesus se detém diante de todo tipo de sofrimento. A parábola do filho pródigo (ou do Pai misericordioso), transmitida somente por Lucas, ilustra bem esse traço de sua narração: Deus revela todo seu perdão e acolhida a quem tinha se afastado de sua casa e de sua presença (Lc 15, 11-32).

    Terceira característica: sentido da justiça. Na narração de Lucas, a compaixão de Jesus vem associada a um notório senso de justiça igualitária. Diferentemente de Mateus, por exemplo, as bem-aventuranças descritas pelo Terceiro Evangelho (Lc 6, 20-23) são imediatamente acompanhadas do “ai de vós” (Lc 6, 24-26). À bondade e à ternura para com os pobres e oprimidos, segue-se a advertência e a possível punição para com ricos e opressores. Em outras palavras, situações desiguais são tratadas de forma diferenciada.

    Quarta característica: diante das assimetrias, injustiças e disparidades socioeconômicas, Deus se faz parcial para respeitar a dignidade humana. Repete-se, aqui, o esquema do Livro do Êxodo, em que Adonai liberta os escravos das mãos do Faraó (Ex 7, 3-10). Os pobres constituem os prediletos do Reino dos Céus, como se vê ainda no Cântico de Maria, Magnificat, onde “Deus derruba os poderosos do trono e exalta os humildes; sacia de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias” (Lc 1, 46-55).

    Quinta característica: continuidade da história da salvação. A exemplo dos demais evangelistas sinóticos, Lucas relê a Antiga Aliança à luz da morte e ressurreição de Jesus, ou seja, à luz da Nova Aliança. Diferentemente deles, porém, após deter-se sobre os atos de Jesus pelas estradas da Galileia e Judeia até Jerusalém, onde se cumpre a promessa, o autor inicia um outro livro para narrar os Atos dos Apóstolos. Em ambos os prólogos (Lc 1, 1-4; At 1, 1-5), dedicados ao “ilustre Teófilo” (amigo de Deus), ilustra justamente a ideia de continuidade entre a saga do Povo de Israel e o caminho de Jesus Cristo. Mas, também, a consolidação da Igreja primitiva, como se nota em seus dois “retratos das comunidades cristãs” (At 2, 42-47; At 4, 32-35).

    Sexta característica: Maria Santíssima e as mulheres no projeto do Mestre. A figura de mãe de Jesus ganha especial relevância no Evangelho de Lucas. Por duas vezes, o evangelista repete praticamente a mesma frase segundo a qual “Maria guardava todas essas coisas e as meditava em seu coração”. Guardar e meditar – dois verbos que indicam uma atitude de grande reverência diante do mistério da salvação. Mas indicam, também, uma forma de ler os fatos históricos com os olhos da fé.

    Sétima característica: a memória se faz tesouro não apenas para viver mais intensamente o presente, mas sobretudo para iluminar e discernir as escolhas do futuro. O mesmo olhar ver-se-á atribuído a Isabel e a outras mulheres que “acompanham o Mestre” (Lc 8, 1-3). “Jesus disse: filha, tua fé te salvou, vai em paz” (Lc 8, 48). Deus irrompe e age na trajetória humana, abrindo-lhe alternativas ao poder fechado, tirânico e opressivo do status quo. Disso resulta uma nova característica do Evangelho de Lucas: o Espírito de Deus guia os passos de Jesus e depois dos apóstolos, orientando igualmente os caminhos da Igreja.

    São Lucas nos ajude a vivenciar bem o ano litúrgico!

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