Na terça-feira, 11 de outubro de 2022, memória de São João XXIII, o Papa Francisco presidiu na Basílica de São Pedro a Santa Missa pelo 60° aniversário do Concílio Vaticano II. Em sua homilia, entre outros, convidou a redescobrirmos o Concílio, “para devolver a primazia a Deus, ao essencial”, recordando que o pedido do Senhor a Pedro para apascentar as suas ovelhas, referia-se não só a algumas, mas a todas, “porque ama a todas; a todas designa, afetuosamente, como «minhas». O bom Pastor vê e quer o seu rebanho unido, sob a guia dos Pastores que lhe deu. (Vatican News). No dia 8 de dezembro último, solenidade da Imaculada Conceição de Maria Santíssima, comemoramos os 57 anos do encerramento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Estamos vivendo um momento especial em que é necessário aprofundarmos a beleza desse Concílio Ecumênico. Em nosso “curso para os Bispos” durante alguns anos aprofundamos os vários documentos conciliares escutando as conferências de especialistas e autoridades dos dicastérios. Também, como lembrança do final deste ano entreguei para cada seminarista de nossa Arquidiocese o livro do grande teólogo D. Cirilo Folch Gomes, OSB com o resumo do Concílio Vaticano comemorando este tempo importante da história, numa edição própria do nosso Regional Leste 1. Nestes tempos de tanta confusão é muito importante nos recolocarmos diante das moções do Espírito Santo que moveu a igreja nessa direção na caminhada conciliar.
Esse foi o maior evento da vida da Igreja no século XX e que, por isso, merece nossa atenção serena e objetiva à luz de importantes declarações dos Papas que o vivenciaram de dentro: São João XXIII, o iniciador, São Paulo VI, o concluinte, o Beato João Paulo I, bispo de Vittorio Veneto (Itália), São João Paulo II, arcebispo de Cracóvia (Polônia) e Bento XVI, jovem sacerdote e teólogo, na condição de perito no Vaticano II. E agora atualizadas com as reflexões do Papa Francisco.
São João XXIII, no Natal de 1961, observando os grandes problemas da humanidade em nível geopolítico e também a pobreza religiosa das pessoas, decidiu, ouvido o parecer de seus irmãos no episcopado, convocar, por meio da constituição apostólica Humanae salutis (HS), o Concílio Vaticano II. São suas palavras: “Desde quando subimos ao supremo pontificado, não obstante nossa indignidade e por um desígnio da Providência, sentimos logo o urgente dever de conclamar os nossos filhos para dar à Igreja a possibilidade de contribuir mais eficazmente na solução dos problemas da idade moderna. Por este motivo, acolhendo como vinda do alto uma voz íntima de nosso espírito, julgamos estar maduro o tempo para oferecermos à Igreja católica e ao mundo o dom de um novo concílio ecumênico, em acréscimo e continuação à série dos vinte grandes concílios, realizados ao longo dos séculos, como uma verdadeira providência celestial para incremento da graça na alma dos fiéis e para o progresso cristão” (HS, 6). Faz-se importante notar que a reta intenção do Papa santo era a de oferecer à Igreja, por graça de Deus, o 21º Concílio Ecumênico, ou seja, uma assembleia de bispos do mundo todo (= ecumênico) a fim de, em continuidade com toda Tradição de 20 séculos, apresentar, como um grande meio de avanço espiritual, aos homens e mulheres do nosso tempo uma palavra do Magistério vivo da Igreja.
E o mesmo Pontífice, no documento já citado, convoca, então, o Concílio: “Depois de ouvir o parecer de nossos irmãos os cardeais da santa Igreja romana, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo e com a nossa, anunciamos, indicamos e convocamos para o próximo ano de 1962, o ecumênico e geral concílio, que se celebrará na Basílica Vaticana, nos dias que serão fixados segundo a oportunidade que a boa Providência quiser nos oferecer” (HS, 18). É, portanto, aquela assembleia conciliar válida e lícita, pois os padres conciliares agiram cum Petro et sub Petro, isto é, junto com Pedro e sob a direção de Pedro, o Papa, a quem Nosso Senhor confiou as chaves da Igreja, prometeu assistência infalível (cf. Mt 16,18-19) – assim como a prometeu, depois, aos 11 reunidos junto com Pedro (cf. Mt 18,18) – e mandou confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,39-40). E o Concílio foi aberto, se realizou e concluiu-se por outro santo, São Paulo VI, em 7/8 de dezembro de 1965.
Em seu Discurso conclusivo da magna assembleia conciliar, o Papa São Paulo VI assegurou que o Concílio deixou não só a imagem de uma Igreja viva e unida, “mas também o patrimônio da sua doutrina e dos seus mandamentos, isto é, o depósito que Cristo lhe confiou; depósito que no decurso dos tempos os homens sempre meditaram, transformaram, por assim dizer, no próprio sangue e exprimiram de algum modo no seu viver; depósito que agora, aclarado em muitos pontos, foi estabelecido e ordenado na sua integridade. Este depósito, vivo pela divina virtude da verdade e da força que o constituem, deve ser considerado apto para vivificar todo o homem que o acate piedosamente e dele alimente a sua própria vida”. E continua a dizer que o Vaticano II, mesmo se voltando aos problemas candentes do século XX e de uma análise da Igreja em si mesma, não deve ser, no campo religioso, acusado de relativista. Ao contrário, é a fé católica que lhe dá a tônica: “Os documentos conciliares, principalmente os que tratam da Revelação divina, da liturgia, da Igreja, dos sacerdotes, dos religiosos, dos leigos, permitem ver diretamente esta primordial intenção religiosa e demonstram quão límpida, fresca e rica é a veia espiritual que o vivo contato com Deus vivo faz brotar no seio da Igreja e correr sobre as áridas glebas da nossa terra”.
E mais: o Concílio, assumindo uma postura otimista, se opôs aos erros sem, no entanto, atacar o errante: “Precisamos de reconhecer que este nosso Concílio se deteve mais nos aspectos felizes do homem que nos desditosos. Nisto ele tomou uma atitude claramente otimista. Uma corrente de interesse e de admiração saiu do Concílio sobre o mundo atual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que em vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de esperança; para que o Concílio falasse ao mundo atual não com presságios funestos, mas com mensagens de esperança e palavras de confiança. Não só respeitou mas também honrou os valores humanos, apoiou todas as suas iniciativas, e depois de os purificar, aprovou todos os seus esforços”. Temos aqui a máxima de Santo Agostinho de Hipona († 430) que convida a amar o homem errante, mas a rejeitar os seus vícios: “Cum dilectione hominum et odio vitiorum” (Carta 211).
Ainda que mais pastoral que doutrinal, o Concílio Vaticano II merece acatamento: “O magistério da Igreja, embora não tenha querido pronunciar-se com sentenças dogmáticas extraordinárias sobre nenhum capítulo doutrinal, propôs, todavia, o seu ensinamento autorizado acerca de muitas questões que hoje comprometem a consciência e a atividade do homem. Por assim dizer, a Igreja baixou a dialogar com o homem; e conservando sempre a sua autoridade e a sua virtude, adotou a maneira de falar acessível e amiga que é própria da caridade pastoral. Quis ser ouvida e entendida pelos homens. Por isso, não se preocupou só com falar à inteligência do homem, mas exprimiu-se no modo hoje usado na conversação corrente, em que o recurso à experiência da vida e o emprego dos sentimentos cordiais dão mais força para atrair e para convencer. Isto é, a Igreja falou aos homens de hoje, tais quais eles são”. O grande protagonista do Concílio, não obstante as falhas de cada ser humano presente, foi, nas palavras do Beato Albino Luciani, Papa João Paulo I: “‘O Espírito Santo! Está presente nos trabalhos com sua assistência para evitar erros e desvios doutrinais’. Uma assistência que irá aos membros do Concílio coletivamente como ‘líderes da Igreja, não como homens individuais’ que ‘permanecerão homens com seu temperamento’” (Andrea Tornielli. O Concílio de Albino Luciani. Vaticannews, 26/08/2020). Exato! Deus não abandona a Sua Igreja, mas, ao contrário, a assiste, de modo ininterrupto, até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20).
Importa ainda, neste breve percurso sobre alguns pontos do Concílio, ouvir também o Papa São João Paulo II ao dizer, em 27 de fevereiro de 2000, que a grande assembleia conciliar só pode ser bem entendida na perspectiva da fé e requer aprofundamento a fim de não ser parcializado ou, quiçá, instrumentalizado. Afirma o Papa: “Sem dúvida, ele [o Concílio] exige um conhecimento cada vez mais profundo. Todavia, no interior desta dinâmica é necessário que não se perca de vista a intenção genuína dos Padres conciliares; pelo contrário, esta deve ser recuperada superando as interpretações desconfiadas e parciais que impediram de exprimir da melhor forma a novidade do Magistério conciliar. A Igreja conhece desde sempre as regras para uma reta hermenêutica dos conteúdos do dogma. Trata-se de regras que se colocam no interior do tecido da fé e não fora dele. Interpretar o Concílio pensando que ele comporta uma ruptura com o passado, enquanto na realidade ele se põe na linha da fé de sempre, é decididamente desviar-se do caminho. Aquilo que foi acreditado por ‘todos, sempre e em cada lugar’ é a autêntica novidade que permite a cada época sentir-se iluminada pela palavra da Revelação de Deus em Jesus Cristo” (ver também: São Vicente de Lérin. Commonitorium, XXIII).
Importa notar, em São João Paulo II, o que também, com muita propriedade, o Papa Bento XVI, hoje emérito, afirma: o Concílio Ecumênico Vaticano II é o 21º da história da Igreja e está em plena conformidade com a doutrina bimilenar da Igreja, doutrina que ele não rejeita, mas, de um modo novo e próprio, reforça. Eis as firmes palavras de Bento XVI em 22 de dezembro de 2005: “Por que a recepção do Concílio, em grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou, como diríamos hoje, da sua correta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas da recepção derivaram do fato de que duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente, mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de definir como hermenêutica da descontinuidade e da ruptura; não raro, ela pôde valer-se da simpatia dos mass media e também de uma parte da teologia moderna. Por outro lado, há a hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo, porém, sempre o mesmo, único sujeito do Povo de Deus a caminho. A hermenêutica da descontinuidade corre o risco de terminar numa ruptura entre a Igreja pré-conciliar e a Igreja pós-conciliar. Ela afirma que os textos do Concílio como tais ainda não seriam a verdadeira expressão do espírito do Concílio”.
E segue: “À hermenêutica da descontinuidade opõe-se a hermenêutica da reforma, como antes as apresentou o Papa João XXIII, no seu discurso de abertura do Concílio, em 11 de outubro de 1962, e, posteriormente o Papa Paulo VI, no discurso de encerramento, a 7 de dezembro de 1965. […] Neste processo de novidade na continuidade, devíamos aprender a compreender mais concretamente do que antes que as decisões da Igreja em relação às coisas contingentes, por exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da Bíblia deviam necessariamente ser elas mesmas acidentais, justamente porque referidas a uma determinada realidade em si mesma mutável. Era preciso aprender a reconhecer que, em tais decisões, somente os princípios exprimem o aspecto duradouro, permanecendo subjacente e motivando a decisão a partir de dentro. Não são, por sua vez, igualmente permanentes as formas concretas, que dependem da situação histórica e podem, portanto, ser submetidas a mutações. Assim, as decisões de fundo podem permanecer válidas, enquanto as formas da sua aplicação a estes novos podem mudar. Assim, por exemplo, se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, se torna canonização do relativismo, por conseguinte, ela, por necessidade social, foi elevada de modo impróprio a nível metafísico e está privada do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceita por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento. Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas deve ser feita pelo próprio homem somente mediante o processo do convencimento”.
O Papa Francisco, ao comemorar 60 anos da abertura do Concílio Vaticano II, assim concluiu sua homilia (Basílica de São Pedro, terça-feira, 11 de outubro de 2022, Memória de São João XXIII, Papa): “Nós Vos damos graças, Senhor, pelo dom do Concílio. Vós que nos amais, livrai-nos da presunção da autossuficiência e do espírito da crítica mundana. Livrai-nos da autoexclusão da unidade. Vós, que nos apascentais com ternura, fazei-nos sair dos recintos da autorreferencialidade. Vós que nos quereis rebanho unido, livrai-nos do artifício diabólico das polarizações, dos «ismos». E nós, vossa Igreja, com Pedro e como Pedro Vos dizemos: «Senhor, Vós sabeis tudo; bem sabeis que Vos amamos» (cf. Jo 21, 17).
Depois destas observações pontuais sobre o Concílio Vaticano II que foi, sem dúvida, em sua reta interpretação, um presente de Deus à Igreja, reafirmamos o nosso desejo de, com a graça de Deus, vivê-lo e ensiná-lo no nosso dia a dia. Recordo da época que começou o Concílio. Estava na escola secundária e o professor de história comentava sobre a importância de um evento desse em nosso tempo. Agora, passados os anos, somos chamados a valorizar e aprofundar aquilo que o Espírito Santo nos diz. Temos previsões de continuar com as várias conferências virtuais e cursos presenciais sobre o tema nestes tempos, assim como o despertar o reto conhecimento de tão grande acontecimento em nossa história contemporânea. Exorto a que façamos mais ainda nessa direção para que as novas gerações possam se aproximar de tão grandes riquezas. Temos certeza de que o Espírito Santo que suscitou no coração de São João XXIII a convocação do mesmo irá continuar conduzindo a Igreja nestes tempos confusos. Diante da pergunta do Senhor colocado pelo Papa Francisco no início de sua homilia: “«Amas-Me?» é a primeira frase que Jesus dirige a Pedro, no Evangelho que ouvimos (Jo 21, 15), ao passo que a última será «apascenta as minhas ovelhas» (21, 17). No aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, sentimos dirigidas também a nós, a nós como Igreja, estas palavras do Senhor: Amas-Me? Apascenta as minhas ovelhas”, seja a nossa resposta: Senhor, tu sabes tudo, tudo sabes que eu Te amo.