Em 30 de setembro último, memória de São Jerônimo, o Papa Francisco publicou a Carta Apostólica Scripturae sacrae affectus (O afeto à Sagrada Escritura). O documento faz memória dos 1600 anos da morte do grande santo que viveu no final do século IV e início do V e nos estimula a uma maior proximidade da Palavra de Deus escrita: São Jerônimo.
Logo de início, o Santo Padre assim se expressa: “O afeto à Sagrada Escritura, um terno e vivo amor à Palavra de Deus escrita é a herança que São Jerônimo, com a sua vida e as suas obras, deixou à Igreja. Tais expressões, tiradas da memória litúrgica do Santo, dão-nos uma chave de leitura indispensável para conhecermos, no XVI centenário da sua morte, a figura saliente que ele é na história da Igreja e o seu grande amor a Cristo. Esse amor ramifica-se, como um rio em muitos canais, na sua obra de incansável estudioso, tradutor, exegeta, profundo conhecedor e apaixonado divulgador da Sagrada Escritura; na sua obra de intérprete primoroso dos textos bíblicos; de defensor ardente e, por vezes impetuoso da verdade cristã; de eremita asceta e intransigente, bem como de sábio guia espiritual, na sua generosidade e ternura. Passados mil e seiscentos anos, a sua figura continua a ser de grande atualidade para nós, cristãos do século XXI”.
São Jerônimo – um apaixonado pela literatura clássica latina, especialmente pelas obras de Cícero, advogado, político, escritor, orador e filósofo romano –, considerava os textos bíblicos como rudes e grosseiros e, por isso, pouco ou nada atraentes. Eis, porém que, na Quaresma de 375 provavelmente, teve uma visão. Nessa visão, Nosso Senhor, como Juiz, perguntava se ele era cristão; ele respondia que sim, mas Cristo o contestou: “Mentes… Tu és ciceroniano; não, cristão!” (São Jerónimo, Epistula 22, 30: CSEL 54, 190). A partir daí, ele tornou-se um ardoroso servidor da Palavra de Deus como seu tradutor e comentador. Mereceu, assim, figurar entre os grandes nomes do período áureo da Patrística (325-451), é doutor da Igreja e dentre os elogios recebidos da Igreja, para nos determos apenas nos séculos XX e XXI, teve a ele dedicada a encíclica Spiritus Paraclitus, de 15 de setembro de 1920, pelo Papa Bento XV. Bento XVI apresentou sua personalidade e suas obras, em duas catequeses sucessivas, bem como assinou a Exortação Apostólica Verbum Domini, em sua memória no ano da graça do Senhor de 2010. Agora, é, uma vez mais, exaltado em seu 16º centenário, na Carta Apostólica Scripturae sacrae affectus, do Papa Francisco, agora publicada.
A vida de São Jerônimo foi vivida ao longo das estradas do Império Romano, entre a Europa e o Oriente, batizado em idade adulta, nos anos que transcorre em Roma como estudante de retórica, entre 358 e 364, conheceu, na Gália, a experiência monástica oriental, difundida por Santo Atanásio, e passa a viver uma vida cenobítica ou comunitária. Em seguida, decide fazer-se eremita: “uma vida ascética em que se reserva grande espaço para o estudo das línguas bíblicas: primeiro, o grego e, depois, o hebraico. Confia-se a um irmão judeu, batizado, que o introduz no conhecimento da nova língua – o hebraico – e dos seus sons, que define ‘estridentes e aspirados (cf. Idem, Epistula 125, 12: CSEL 56, 131)”. Tem o deserto como “o lugar das opções existenciais fundamentais, de intimidade e encontro com Deus, onde, através da contemplação, das provações interiores, do combate espiritual, chega ao conhecimento da fragilidade, com uma maior consciência das limitações próprias e alheias, reconhecendo a importância das lágrimas (Epistula 122, 3: CSEL 56, 63). Desse modo, no deserto, sente a presença concreta de Deus, a necessidade do relacionamento do ser humano com Ele, a sua misericordiosa consolação”. Dele se pode dizer que viveu uma dupla grandeza, mas que, paradoxalmente, se complementam: “por um lado, a consagração absoluta e rigorosa a Deus, renunciando a qualquer satisfação humana, por amor de Cristo crucificado (cf. 1Cor 2,2; Fl 3,8.10); por outro, o empenho assíduo no estudo, visando exclusivamente uma compreensão cada vez maior do mistério do Senhor”.
Foi ordenado presbítero em Antioquia, mas, em 382, voltou para Roma. Aí começou a revisão das traduções avulsas de livros da Bíblia para o latim. Obra que só concluiu, na gruta da Natividade, em Belém, para onde se mudou definitivamente no ano de 386 e fundou um mosteiro duplo (para homens em uma parte e mulheres na outra parte). Sobre seu trabalho de tradução escreve o Papa Francisco: “Em Belém, Jerônimo vive – até à morte, em 420 – o período mais fecundo e intenso da sua vida, totalmente dedicado ao estudo da Escritura, empenhado na obra monumental da tradução de todo o Antigo Testamento a partir do original hebraico”. Mais: “Gasta os últimos anos da sua vida na leitura orante, pessoal e comunitária, da Escritura, na contemplação, no serviço aos irmãos através das suas obras”. O Santo Padre chama a atenção também para outro ponto específico: “Nos últimos tempos, os exegetas descobriram a genialidade narrativa e poética da Bíblia, exaltada precisamente pela sua qualidade expressiva; Jerônimo, ao contrário, destacava mais, na Escritura, o caráter humilde com que Deus Se revelou expressando-se na natureza áspera e quase primitiva da língua hebraica, quando comparada com o primor do latim ciceroniano. Portanto, não é por um gosto estético que ele se dedica à Sagrada Escritura, mas apenas – como é bem sabido – porque ela o leva a conhecer Cristo, pois a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo” (Cf. São Jerónimo, In Isaiam Prol.: PL 24, 17; ou então R. Maisano (ed.), Commento a Isaia (1-4), vol. IV/1 da coletânea «Opere di San Girolamo» (Città Nuova, Roma 2013), 52-53)”.
Outro ponto perceptível em São Jeronimo de certo é esse: “todo o Antigo Testamento é indispensável para penetrar na verdade e na riqueza de Cristo (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 14)”. “O Antigo Testamento não deve ser visto como um amplo repertório de citações que demonstram o cumprimento das profecias na pessoa de Jesus de Nazaré; pelo contrário, e mais radicalmente, só à luz das ‘figuras’ veterotestamentárias é possível conhecer em plenitude o sentido do evento de Cristo, que se realizou na sua morte e ressurreição. Daí a necessidade de redescobrir, na práxis catequética e na pregação bem como nos estudos teológicos, a contribuição indispensável do Antigo Testamento, que há de ser lido e assimilado como alimento precioso (cf. Ez 3,1-11; Ap 10,8-11). Cf. ibidem”. Outro ponto que Jerônimo é consciente é o da necessidade de haver um intérprete autorizado para se entender bem a Palavra de Deus: “Por isso, torna-se necessária a mediação do intérprete que exerça a sua função ‘diaconal’, colocando-se ao serviço de quem não consegue compreender o sentido daquilo que foi escrito profeticamente. A figura que se pode evocar, a este respeito, é a do diácono Filipe, solicitado pelo Senhor para ir ao encontro do eunuco que, sentado no seu carro, está a ler uma passagem de Isaías (53,7-8), mas sem poder desvendar o seu significado. ‘Compreendes verdadeiramente o que estás a ler?’: pergunta Filipe; e o eunuco responde: ‘E como poderei compreender, sem alguém que me oriente?’ (At 8,30-31). Cf. São Jerónimo, Epistula 53, 5: CSEL 54, 451; ou então S. Cola (ed.), Le Lettere, vol. II da coletânea «Opere di San Girolamo» (Città Nuova, Roma 1997), 54.
Disso, o Santo Padre extrai uma norma prática: “Por conseguinte, a par dum incremento dos estudos eclesiásticos, dirigidos a sacerdotes e catequistas, que proporcionem de forma mais adequada a competência na Sagrada Escritura, deve ser promovida uma formação alargada a todos os cristãos, para que cada um se torne capaz de abrir o livro sagrado e colher os seus frutos inestimáveis de sabedoria, esperança e vida Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 21”. São Jerônimo é o pai da Vulgata: “O ‘fruto mais doce da árdua sementeira’ (São Jerónimo, Epistula 52, 3: CSEL 54, 417) que foi o estudo do grego e do hebraico, feito por Jerônimo, é a tradução do Antigo Testamento em latim a partir do original hebraico. […] O resultado é um verdadeiro monumento que marcou a história cultural do Ocidente, modelando a sua linguagem teológica”. A Vulgata, adotada com louvores pelo Concílio de Trento, guiou gerações por séculos na Igreja. São Paulo VI encomendou sua revisão e, em 1979, São João Paulo II, mediante a Constituição Apostólica Scripturarum thesaurus, promulgou a edição típica chamada Neovulgata. Com isso, o santo monge muito ajudou o Povo de Deus. Afinal, “com esta sua tradução, Jerônimo conseguiu ‘inculturar’ a Bíblia na língua e cultura latinas, tornando-se esta operação um paradigma permanente para a ação missionária da Igreja. […] Sem tradução, as diferentes comunidades linguísticas ver-se-iam impossibilitadas de comunicar-se entre si; fecharíamos as portas da história uns aos outros e negaríamos a possibilidade de construir uma cultura do encontro […]. O tradutor é um construtor de pontes”. Graças a tudo isso, hoje podemos registrar a “tradução da Palavra de Deus em mais de três mil línguas”.
O Papa Francisco chama ainda a atenção para a devoção de São Jerônimo para com o Papa, sucessor de Pedro: “Jerônimo olha para a Cátedra de Pedro como ponto de referência seguro: ‘Eu, que não sigo mais ninguém senão Cristo, uno-me em comunhão com a Cátedra de Pedro. Eu sei que sobre esta pedra está edificada a Igreja’. No meio das disputas com os arianos, escreve a Dâmaso: ‘Quem não junta contigo, desperdiça; quem não é de Cristo, é do anticristo’ (Idem, Epistula 15, 2: CSEL 54, 62-64). Por isso, pode também afirmar: ‘Eu estou com todo aquele que estiver na Cátedra de Pedro’ (Idem, Epistula 16, 2: CSEL 54, 69)”. Foi também o santo uma autêntica “Biblioteca de Cristo”. Mais: “No século IV, Postumiano, que viajou pelo Oriente para descobrir movimentos monásticos, foi testemunha ocular do estilo de vida de Jerônimo, com quem viveu alguns meses, tendo-o descrito assim: ‘Encontra-se todo embrenhado na leitura, todo embrenhado nos livros; não descansa de dia nem de noite; sempre está a ler ou a escrever qualquer coisa’ (Sulpicius Severus, Dialogus I, 9, 5: SCh 510, 136-138)”.
O Santo Padre termina a sua Carta Apostólica invocando Nossa Senhora: “Exemplo luminoso é a Virgem Maria, evocada por Jerônimo sobretudo na sua maternidade virginal, mas também na sua atitude de leitora orante da Escritura. Maria meditava no seu coração (cf. Lc 2,19.51) ‘porque era santa e lera a Sagrada Escritura, conhecia os profetas e lembrava-se do que o anjo Gabriel lhe anunciara e fora vaticinado pelos profetas (…), via o recém-nascido que era seu filho, o seu único filho que jazia e chorava naquele presépio, mas verdadeiramente a quem ela via ali deitado era o Filho de Deus. O que ela via comparava-o com quanto lera e ouvira’ (Idem, Homilia de nativitate Domini IV: PL Suppl. 2, 191). Confiemo-nos a ela, que pode, melhor do que ninguém, ensinar-nos como ler, meditar, rezar e contemplar a Deus que se faz presente na nossa vida, sem nunca se cansar”.
Hoje, com a graça de Deus, podemos contar, no Brasil com duas grandes graças: 1) excelentes traduções da Sagrada Escritura com ricas introduções, mapas e notas de rodapé, inclusive online, e 2) na ampla maioria das dioceses (senão em todas), cursos de qualidade sobre a Sagrada Escritura. Aqui, na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, além das louváveis iniciativas de paróquias, universidades, faculdades, grupos e outros movimentos religiosos, temos três cursos por correspondência da nossa Escola Mater Ecclesiae: o Curso Bíblico, que estuda cada um dos livros sagrados e demais aspectos para melhor entender a Palavra de Deus, o Curso de Parábolas e Páginas Difíceis do Evangelho, que, segundo o nome sugere, aprofunda todas as parábolas dos Evangelhos e as passagens que podem trazer dificuldades aos leitores (a data do nascimento de Jesus, o episódio dos reis magos, o dia e a hora da morte de Jesus, etc.), e o Descobrindo o Antigo Testamento a tratar das particularidades do pensamento semita, da grande mensagem doutrinária do Antigo Testamento, sua moral, seus prodígios, etc. Deus seja louvado por essa brilhante iniciativa da Mater Ecclesiae, há décadas trabalhando para o bem do Povo de Deus com os três citados cursos de Sagrada Escritura e mais outros vinte e um sobre Filosofia, Teologia e Direito Canônico.