Nenhum outro mês da Bíblia foi tão substancialmente valorizado quanto o desse ano de 2020. “O afeto à Sagrada Escritura” foi o grande presente que coroou esse mês com a celebração do décimo sexto centenário da morte de São Jerónimo. Aliás, esse título da última carta apostólica do nosso Papa Francisco faz jus à memória do grande tradutor bíblico que “vulgarizou” (no bom sentido de sua Vulgata) o acesso universal à Palavra de Deus, com sua tradução mais popular dos originais gregos e hebraicos conhecidos em sua época. Por isso a importância dessa data, lembrando a morte de Jerónimo e o primeiro ano da instituição do Domingo da Palavra, quando nosso Papa promulgou o moto próprio intitulado “Abriu-lhes a mente ao entendimento (Lc 24)”. A Vulgata é hoje base para a grande maioria das traduções bíblicas (inclusive evangélicas). Fruto de uma vida inteira de estudos e reflexões, de vida orante e submissa à vontade divina, de renúncia e subsequente vida eremita, o trabalho intelectual mas obstinado de Jerónimo foi fundamental para o crescimento do cristianismo e sua ação missionária no mundo, essa mesma que chegou até nós e nos propiciou o conhecimento do Cristo. Segundo Jerónimo, fez apenas uma obrigação. O próprio Papa resgata em sua carta uma história apócrifa que bem ilustra a vida desse abnegado servidor da vontade de Deus. “Que quereis de mim?” E Ele responde: “Ainda não Me deste tudo”. “Mas, Senhor, já Vos dei isto…isto… e isto” – “Falta uma coisa!” – “O que?” – “Dá—Me os teus pecados, para que Eu possa ter a alegria de voltar a perdoá-los”. Essa mesma história, coincidentemente, é a conclusão do meu livro Altar dos Sacrifícios, respondendo a infinita ação de Deus em nós e através de nós. Isso Jerónimo bem conhecia. Tão bem que considerava a Palavra de Deus parte do mistério Eucarístico.
Afirmou um dia: “Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu sangue” (Jo 6,53), embora estas palavras se possam entender do Mistério (Eucarístico), todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e seu sangue” (37). Tamanha descoberta só mesmo de alguém em profunda sintonia com Deus e sua Palavra. Tanto que aqui o Papa se justifica pelo empenho desta data e importância de sua carta. “Por isso, quis instituir o Domingo da Palavra de Deus (38) para encorajar a leitura orante da Bíblia e a familiaridade com a Palavra de Deus”. A tradução denominada Vulgata não é uma simplificação da Palavra, mas, ao contrário, um aprofundamento. Um mergulho em seus mistérios. “O tradutor é um construtor de pontes. Quantos juízos precipitados, quantas condenações e conflitos nascem do facto de ignorarmos a língua dos outros e de não nos aplicarmos, com tenaz esperança, a esta prova de amor infindável que é a tradução”, comenta o Papa. E acrescenta: “Com a celebração da morte de São Jerónimo, o olhar volta-se para a vitalidade missionária extraordinária que se manifesta na tradução da Palavra de Deus em mais de três mil línguas”. Como estaríamos hoje sem esse trabalho de amor e devoção dum homem santo?
Esse mesmo santo que nunca renegou sua Igreja, nem ocupou pedestais de glória por seu trabalho. “Eu que não sigo mais ninguém senão Cristo, uno-me em comunhão com a Cátedra de Pedro. Eu sei que sobre esta pedra está edificada a Igreja”. Esse mesmo homem admirado e respeitado pelos grandes intelectuais de sua época, cuja descrição mais comum que dele faziam era: “Encontra-se todo embrenhado na leitura, todo embrenhado nos livros; não descansa de dia nem de noite; sempre está a ler ou a escrever qualquer coisa” (Postusmiano). Ao Papa faz lembrar um dos maiores problemas da atualidade, o analfabetismo cultural. Então Francisco faz um apelo, em especial aos jovens: “Quero lançar um desafio: parti à procura da vossa herança. O cristianismo torna-vos herdeiros dum patrimônio cultural insuperável, do qual deveis tomar posse. Apaixonai-vos por esta história, que é vossa. Tende a ousadia de fixar o olhar naquele jovem inquieto que foi Jerónimo; ele, como a personagem da parábola de Jesus, vendeu tudo quanto possuía para comprar a “pérola de grande valor”. Verdadeiramente Jerónimo é a “Biblioteca de Cristo”, concluiu.