Como entender e acreditar num Ano Santo, quando o que se encerra foi marcado por tantas e tamanhas crises e degenerações político-sociais? Será possível reverter esse quadro através de um rito ou promulgação religiosa apenas? Um papa possui tão grandes poderes? Na visão secularizada de uma sociedade imersa em seus problemas e contradições, são essas as perguntas mais corriqueiras. Mas na visão cristã, a proclamação de um Ano Santo vai muito além dessas picuinhas mundanas. Senão, vejamos…
Um Ano Santo vem de uma tradição judaico-cristã. Na celebração judaica, que acontecia a cada 50 anos, o chamado ano sabático era um tempo de descanso, de perdão, de gratidão, de louvor. Nada mais se fazia a não ser buscar a reconciliação, dar descanso aos campos, libertar os escravos, devolver propriedades a seus legítimos donos e perdoar todas as dívidas. Baseavam-se no livro de Levítico, que diz: “Santificareis o qüinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam. Este ano será para vós Jubileu: cada um de vós voltará à sua propriedade e à sua família” (Lv 25,10). Assim, em uníssono, todo ser humano, rico ou pobre, escravo ou prisioneiro, colocavam-se num plano de igualdade e de gratidão a Deus pelo dom da vida. Ganhavam novo recomeço, nova oportunidade de se reposicionarem diante de Deus e da sociedade.
Na tradição cristã essa celebração baseia-se nas palavras do próprio Jesus, quando visita uma Sinagoga num dia de sábado e proclama sobre si as palavras do profeta Isaias: “O Espírito do Senhor está sobre mim, por isso ele me ungiu e me mandou anunciar aos pobres uma mensagem, para proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a recuperação da vista, para colocar em liberdade os oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-20). Era Ele o emissário de um novo tempo, o portador de uma nova aliança. Estavam abertas as portas da redenção!
Mesmo assim, foram necessários mais 1300 anos para sua Igreja perceber a importância deste “ano da graça” na história humana. Somente após esse período é que o Papa Bonifácio VIII oficializou o primeiro Ano Santo como celebração periódica e oportunidade de indulgências e santificação do povo. Foi um acontecimento inesquecível, que trouxe a Roma um grande número de peregrinos e fiéis que se prostravam aos pés dos túmulos de Pedro e Paulo. Desde então, a Igreja dá continuidade a essa tradição, prevista e anunciada por Cristo como tempo de Reconciliação. Aliás, é exatamente esse o maior significado de um Ano Santo, quando o povo de Deus é convidado a buscar nos sacramentos uma maior sintonia com os planos do Pai na nossa história. Sua periodicidade tem por meta atingir todas as gerações.
Agora se abrem para o mundo as portas de um novo ano jubilar. Com o tema “Deus rico em misericórdia” (Ef 2,4), o papa Francisco o proclama em caráter extraordinário, para celebrar os cinqüenta anos do Concílio Vaticano II e dar à Igreja a oportunidade de refletir sobre o tema mais proferido em seu pontificado (citado 31 vezes só na encíclica Evangelli Gaudium), a misericórdia. Com proveito e fundamento nas leituras de Lucas (o evangelista da misericórdia), Francisco abriu mais uma vez a Porta Santa de Pedro. Convida-nos a um novo tempo com olhar mais atento aos caminhos que estamos trilhando, rumo ou não à Salvação prometida pelo Pai da Misericórdia. Aliás, o sentido dessa palavra já é um grande questionamento: era o nome de um punhal usado para matar os inimigos dominados ou feridos num combate. O chamado golpe de misericórdia. Etimologicamente, é muito mais. Significa que toda miséria humana (misere) passa pelo coração de Deus (córdia). Ele conhece nossas misérias e fraquezas. Mesmo assim nos abre as portas de seu coração amoroso.