A diminuição da maioridade penal

    A realização de Seminários e Fóruns que discutem a questão da redução da maioridade penal é uma realidade em nossa Arquidiocese. Seja através de várias ONGs que trabalham nas comunidades, seja através das pastorais e serviços arquidiocesanos que estão presentes junto aos menores. Estas realizações são oportunas neste tempo em que a sociedade brasileira discute a questão da maioridade penal, e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 171) está sendo analisada pela Câmara dos Deputados. A comissão especial da Câmara dos Deputados que discute a maioridade penal aprovou no dia 17 de junho deste ano, por 21 votos favoráveis e 6 contrários, o relatório do deputado Laerte Bessa (PR-DF) que reduz de 18 para 16 anos a idade penal para os crimes considerados graves. (Seria muito importante que lêssemos em que textos e argumentos essa PEC de 1993 se baseia.) Ela deu origem a vários outros projetos que foram apensados.
    A maioridade penal é um tema que reaparece de tempos em tempos em nosso país, sobretudo quando episódios de violência envolvendo menores são explorados pela mídia e mobilizam a opinião pública. Por isso, eu gostaria de expor algumas ideias que julgo relevantes para a busca de soluções em meio a toda esta grave questão.
    No início deste mês de junho, escrevi um artigo a respeito do assunto, no qual procurei traçar, primeiramente, um esboço da situação em que nos encontramos e que suscita revolta contra a aparente impunidade dos praticantes de delitos. Não podemos negar que muitos crimes que estão acontecendo, infelizmente, são praticados por menores infratores na nossa cidade, e nos solidarizamos com as vítimas e suas famílias. Constatamos a banalização da vida humana e a perda do sentido de que o nosso corpo é templo do Espírito Santo quando observamos cenas de violência, com facadas em pessoas de bem ou roubos da mesma maneira, que são transformados em latrocínio, seja com as chamadas “armas brancas” ou também com outros tipos de armas que amedrontam a população. Eu mesmo fui vítima de um desses assaltos.
    Então, novamente proponho aos senhores uma primeira pergunta que já apresentei à época e que atualmente interpela a consciência de cada brasileiro comprometido com um ético exercício da cidadania: “Reduzir a maioridade penal irá resolver a espiral de violência praticada por menores infratores”?
    A outra pergunta é sobre o que realmente a sociedade está buscando. Sabemos que ela busca segurança, o ir e vir com tranquilidade, a paz em nossas ruas e praças. A confiança de podermos estar em nossas casas. Com uma sociedade falida como a nossa as dificuldades são enormes. A propagação de violência cometida por menores e o aproveitamento deles por maiores causa revolta a todas as pessoas. Culpar os menores e o ECA por isso é falsear as verdade com relação ao tecido social cheio de problemas que hoje temos. E tomar uma decisão penalizando os menores, em vez de solucionar poderá piorar ainda mais a situação do país. Infelizmente, a pressão midiática sobre os parlamentares não deixa que eles tomem posições com tranquilidade e baseadas em dados objetivos. Este momento é muito sério para nossa sociedade.
    Segundo nota divulgada pela Rádio Vaticano em março passado para a CNBB, o verdadeiro problema hoje não é a violência perpetrada por menores em nosso país, mas sim aquela contra os menores. Argumento corroborado pelas estatísticas que mostram que apenas 0,1% (ou 0.13%) dos homicídios no país tem menores como protagonistas, enquanto os adolescentes assassinados chegam a 36%. Os bispos brasileiros consideram que a redução da idade penal dos menores que cometeram delitos não é a solução ao problema da violência no Brasil.
    Esta também é a posição da Caritas Brasileira e do Departamento dos Bispos para a Pastoral do Menor, que afirmam em nota conjunta que “a cultura da paz não se obtém por mágica com estes meios”, destacando que, de fato, o que falta é uma efetiva aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no país.
    “É preciso, portanto, promover uma sociedade mais justa e combater na raiz as causas da violência juvenil: o desemprego, a ignorância, a pobreza, a marginalização que atingem tantos jovens brasileiros. Tudo isso – afirma a Caritas Brasileira – coloca em causa as responsabilidades do Estado, que deve apoiar os jovens e as famílias mais necessitadas. Quando os direitos dos menores são respeitados é mais difícil que eles violem os direitos humanos dos demais”, conclui a nota”.
    Ainda em 2013, quando a redução da maioridade penal estava sendo discutida no Senado brasileiro, os bispos reafirmaram que crianças, adolescentes e jovens precisam antes “ser reconhecidos como sujeitos da sociedade, merecedores de cuidado, respeito, acolhida e oportunidades”.
    A Igreja vê a necessidade de, primeiramente, verificar as verdadeiras causas da criminalidade. Estas estão, sobretudo, na “desagregação familiar, na falta de oportunidades, nas desigualdades sociais, na insuficiência de políticas públicas sociais, na perda dos valores éticos e religiosos, na banalização da vida e no recrutamento feito pelo narcotráfico”, ainda segundo a CNBB.
    A nota da CNBB também ressaltava o trabalho da Igreja Católica que, por meio de suas comunidades eclesiais, pastorais, movimentos e entidades sociais, desenvolve projetos que indicam à sociedade caminhos de ações educativas e não punitivas.
    No último mês de abril, a Pastoral do Menor também divulgou uma nota contra a redução da maioridade penal no Brasil. O texto é dirigido aos deputados federais que integram a Comissão Especial de Elaboração da PEC. Essa Carta, dirigida aos Deputados Federais membros da Comissão Especial de Elaboração da Proposta de Emenda à Constituição Federal que Reduz a Maioridade Penal no Brasil, lembra que: “De um lado podemos priorizar os valores da vingança, ódio, discriminação, encarceramento, total ausência de oportunidades, confinamento e de uma forte tendência a um perigoso higienismo social. Do outro lado temos os valores cristãos dos direitos humanos, dos processos de oportunidades e respeito absoluto à pessoa humana, da presença de uma tolerância educativa e restaurativa, de ações preventivas que possam interromper esse ciclo de violência e, sobretudo, o valor da vida e não da morte. Afinal, essa é a escolha necessária diante dessa proposta”.
    O bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em entrevista sobre o Projeto de Emenda à Constituição nº. 171/1993, afirmou que “a retomada da tramitação da PEC nº. 171/1993 e as várias proposições apensadas são iniciativas que objetivam criminalizar o adolescente e submetê-lo a penalidades no âmbito carcerário, maquiando a verdadeira causa do problema e desviando a atenção com respostas simplistas, inconsequentes e desastrosas para a sociedade. A delinquência de adolescentes é, antes de tudo, um grave aviso: o Estado, a Sociedade e a Família não têm cumprido adequadamente seu dever de educar, formar, integrar. Ao mesmo tempo, não têm assegurado, com prioridade, os direitos da criança e do adolescente, conforme estabelece o artigo 227 da Constituição Federal”.
    Creio que esta breve compilação de depoimentos resume o pensamento do episcopado brasileiro, e o meu próprio, sobre a redução da maioridade penal.
    Desejo, ainda, destacar dois aspectos muito importantes que fundamentam nossa posição contrária a esta decisão. O primeiro deles é o mito de que o adolescente pode responder criminalmente pelos seus atos porque tem consciência do que faz e sabe discernir entre o que é “certo” e o que é “errado”.
    Sobre isto, o Dr. Murillo José Digiácomo, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná e integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, esclarece que a questão do discernimento é absolutamente irrelevante, pois hoje podemos encontrar crianças com menos de 4 anos de idade que sabem distinguir “o certo do errado”.
    A fixação da idade penal em 18 anos ou mais – critério adotado por 59% dos países do mundo – deve-se à condição especial do adolescente. Na adolescência, quando há a transição entre a infância e a idade adulta, a pessoa atravessa uma fase de profundas transformações psicossomáticas, tornando-a mais propensa à prática de atos antissociais (não apenas crimes, mas toda e qualquer forma de manifestar rebeldia e inconformismo com regras e valores socialmente impostos). Isto demanda um tratamento diferenciado, com especial enfoque para sua orientação e efetiva recuperação, que somente pode ser obtida em instituição própria, onde exista uma proposta pedagógica séria e bem definida.
    O segundo aspecto que merece ênfase nesta questão, pois preocupa um grande número de pessoas, é a falsa concepção de que os adolescentes não responderiam por seus atos perante a justiça, permanecendo “impunes”. Na realidade, a partir dos 12 anos, eles respondem por seus atos antissociais e podem receber sanções que não são chamadas de “penas”, mas de “medidas socioeducativas”.
    O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê seis medidas educativas para menores infratores: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Recomenda que a medida seja aplicada de acordo com a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias do fato e a gravidade da infração. Os regimes de restrição ou privação da liberdade equivalem às penas de detenção para os adultos em regime semiaberto e fechado. O adolescente pode ficar até 9 anos em medidas socioeducativas, sendo três anos interno, três anos em semiliberdade e três anos em liberdade assistida, com o Estado acompanhando e ajudando a se reinserir na sociedade. Em muitos casos, o tratamento dispensado a um adolescente pode ser mais rigoroso do que aquele que a lei penal confere a um adulto em situação idêntica.
    Infelizmente, tais medidas que deveriam ser “socioeducativas” não atingem seus objetivos. Muitos adolescentes que são privados de sua liberdade, não ficam em instituições preparadas para sua reeducação, reproduzindo o ambiente de uma prisão comum (quem conhece esses locais de privação de liberdade, superlotados e sem orientação sabe muito bem que não é esse o espírito da lei).
    O Estatuto da Criança e do Adolescente até hoje não foi aplicado como deveria, nem com a seriedade com que foi escrito. As falhas nessa aplicação não justificam uma decisão da sociedade em buscar uma solução pautada em sede de vingança ou revanchismo. Não podemos eliminar os efeitos sem tratar das causas. Prender em prisões comuns os adolescentes das periferias existenciais, das comunidades ou aqueles que são marginalizados pela sociedade não resolveria o problema da violência.
    Com a desagregação das famílias, falta de ambientes sadios, de ensino de qualidade, saúde, lazer e uma vida digna, sendo cooptados pelo trabalho imoral e vivendo em ambientes violentos nós nos perguntamos se as crianças têm segurança para crescer, como ensinou Jesus, “em estatura, graça e santidade”, ou se elas aprendem o contrário da vida e, assim, são vítimas da violência que grassa por todos os lados.
    A violência deve ser combatida com educação e na perspectiva de inserção no mundo do trabalho. Necessitamos valorizar e proteger a família, lugar onde os autênticos valores sejam vividos e ensinados às futuras gerações. Precisamos valorizar o jovem, considerá-lo como parceiros na caminhada para a construção de uma sociedade melhor.
    Segundo dados públicos por vários órgãos, os “juristas estimam em 70% a reincidência nos presídios brasileiros”. Isso, além da violência que lá existe e também a completa falta de dignidade humana. O Brasil, para trazer um condenado do exterior, teve que demonstrar a um país da Europa que ao menos “um” presídio tinha condições humanas para o condenado cumprir sua pena. O que parece ser uma vitória do governo brasileiro é, no entanto, uma vergonha ter que provar para um país estrangeiro que aqui é possível cumprir penas tendo os direitos humanos respeitados. É claro que, infelizmente, essa prova é apenas para um presídio, porque se fossem para os outros que conhecemos…! Nas atuais condições, dizem as estatísticas que a população carcerária brasileira é a terceira (ou quarta) maior do mundo. Além das cadeias superlotadas, sabemos que existem milhares de criminosos violentos soltos. É voz comum que muitos presídios são, na verdade, escolas de “pós-graduação” em crimes.
    A responsabilidade penal no Brasil, como vimos, é de 12 anos, entretanto a punição é feita na instância diferenciada dos adultos através das orientações do ECA. Segundo algumas estatísticas, a reincidência de menores reeducados em alguns estados varia entre 13% a 22%. Outras estatísticas dão de 35% a 54%. Creio que é uma dificuldade encontrar um parâmetro, mas o geral é que parece que, mesmo com as precárias condições de nossos locais de “privação de liberdade” (as vezes piores que as prisões), mas que têm algum tipo de formação e orientação, ainda consegue reeducar um pouco mais que as prisões de adultos. Nesse caso, em se provando isso, empurrar os jovens infratores para o sistema prisional adulto falido pode fazer aumentar a violência, a reincidência em vez de resolver a questão.
    Concluo com uma belíssima exortação do Papa Francisco, parte do discurso que ele proferiu na Cerimônia de boas-vindas no Palácio Guanabara, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude Rio 2013:
    “A juventude é a janela pela qual o futuro entra no mundo. É a janela e, por isso, nos impõe grandes desafios. A nossa geração se demonstrará à altura da promessa contida em cada jovem quando souber abrir-lhe espaço. Isso significa: tutelar as condições materiais e imateriais para o seu pleno desenvolvimento; oferecer a ele fundamentos sólidos, sobre os quais construir a vida; garantir-lhe segurança e educação para que se torne aquilo que ele pode ser; transmitir-lhe valores duradouros pelos quais a vida mereça ser vivida, assegurar-lhe um horizonte transcendente que responda à sede de felicidade autêntica, suscitando nele a criatividade do bem; entregar-lhe a herança de um mundo que corresponda à medida da vida humana; despertar nele as melhores potencialidades para que seja sujeito do próprio amanhã e corresponsável do destino de todos. Com essas atitudes precedemos hoje o futuro que entra pela janela dos jovens”.