Nestes dias de reflexão sobre o legado do Papa Francisco, um texto do inicio de seu pontificado traça um programa de trabalho e de missão. Inspirada no Documento de Aparecida, que o Papa Francisco, enquanto Cardeal Bergoglio dirigiu a comissão de redação final, vale a pena refletir sobre suas palavras.
A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (“A Alegria do Evangelho”), publicada pelo Papa Francisco em 24 de novembro de 2013, é um marco essencial do início de seu pontificado e se tornou um verdadeiro “programa” para a renovação missionária da Igreja. Nela, o Papa traça com clareza o caminho para uma Igreja mais próxima do povo, mais fiel ao Evangelho e mais comprometida com os pobres. Não se trata apenas de um documento entre tantos, mas de uma convocação vibrante e profética a todos os batizados: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG, 49).
O Papa inicia a exortação com uma afirmação decisiva: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG, 1). Essa alegria é fruto de um encontro pessoal com Cristo vivo, e dela nasce o impulso missionário. Não é possível evangelizar de maneira verdadeira sem essa alegria interior, que transforma a tristeza e o medo em ousadia e generosidade.
Francisco insiste que a evangelização não pode ser feita com o rosto fechado ou com o tom de quem impõe uma obrigação moral. Pelo contrário, ela deve revelar o rosto misericordioso de Deus, que convida com ternura e amor: “O bem tende sempre a comunicar-se… todo cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus” (EG, 9).
Um dos pilares centrais da Evangelii Gaudium é o chamado a sermos uma Igreja em saída. O Papa convoca todos — bispos, padres, diáconos, religiosos, leigos — a não se fecharem em estruturas ultrapassadas, mas a saírem ao encontro dos que mais precisam, onde quer que estejam: “Sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, 20).
Essa saída exige conversão. Francisco propõe uma conversão pastoral e missionária, que toque todos os aspectos da vida e da organização eclesial: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal adequado para a evangelização do mundo atual” (EG, 27).
O coração da missão é o anúncio de Jesus Cristo. Francisco nos alerta contra o risco de colocar secundários no centro e esquece o essencial: “Há que reiterar com frequência e vigor o primeiro anúncio: Jesus Cristo te ama, deu a sua vida para salvar-te e agora está vivo ao teu lado cada dia para iluminar-te, fortalecer-te, libertar-te” (EG, 164).
Esse anúncio deve ser feito com ternura, escuta, proximidade, sem proselitismo, respeitando o caminho de cada pessoa. A missão é uma proposta de vida, não uma imposição. Evangelizar é oferecer a experiência do amor de Deus que salva, que transforma e que gera fraternidade.
O Papa Francisco dedica parte substancial da exortação à dimensão social da evangelização, recordando que não há autêntico anúncio do Evangelho que ignore a realidade dos pobres e das injustiças sociais. “Desejo uma Igreja pobre para os pobres. Eles têm muito a ensinar-nos… temos de deixar-nos evangelizar por eles” (EG, 198).
A denúncia da “economia que mata” (EG, 53) e da “cultura do descarte” revela a preocupação profunda do Papa com o modo como a globalização gera desigualdades e marginalização. A evangelização, portanto, não pode ficar restrita ao templo ou à liturgia; ela deve estender-se à vida social, política, econômica, com base nos valores do Reino de Deus.
Francisco propõe um olhar crítico sobre as estruturas da Igreja, especialmente quando elas se tornam obstáculos para o encontro com Cristo. Ele fala de uma “Igreja em reforma”, capaz de descentralizar-se, valorizar as Igrejas locais, dar voz aos leigos e envolver toda a comunidade eclesial na missão.
Ele também aborda com coragem temas como o clericalismo, a função dos leigos, o papel das mulheres, a formação dos agentes de pastoral e a necessidade de maior simplicidade na pregação: “A homilia pode ser bela, mas se não provoca um encontro com Jesus vivo, corre o risco de ficar em palavras vazias” (EG, 138).
Francisco encerra a exortação com uma forte ênfase na espiritualidade missionária. Evangelizar não é fruto de técnica, mas de docilidade ao Espírito Santo, que conduz a Igreja com criatividade, ousadia e novidade. “O Espírito Santo enriquece toda a evangelização com diferentes carismas… é o protagonista autêntico da evangelização” (EG, 130).
Nesse sentido, a missão não pode ser vivida como um peso, mas como um ato de amor e liberdade, como expressão de uma Igreja que vive da alegria da ressurreição e deseja compartilhá-la com todos.
Passados mais de dez anos desde a publicação da Evangelii Gaudium, seu conteúdo continua profundamente atual. É uma exortação que nos move, nos questiona e nos inspira. O Papa Francisco, com sua linguagem simples e direta, conseguiu renovar a esperança missionária da Igreja no século XXI.
Cabe agora a cada comunidade, paróquia, diocese, grupo de base ou movimento, acolher esse apelo e traduzi-lo em ações concretas. Que possamos, com coragem e alegria, sair ao encontro do outro e anunciar, com a vida e com as palavras, que Jesus Cristo vive, ama e caminha conosco.