O quinto e último capítulo da longa Encíclica Dilexit nos, do Papa Francisco, tem por título Amor por amor, extraído de São Charles de Foucauld (cf. n. 179). Tal capítulo é apresentado, sobretudo, a partir das revelações particulares que Santa Margarida Maria Alacoque teve do Sagrado Coração de Jesus no século XVIII. Vejamo-lo com atenção.
Escreve o Santo Padre no número 164: “Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação, não implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades”. Em suma, o amor de Deus, operante em nós, não anula o nosso ser; antes, respeita a sua liberdade de resposta a este mesmo Amor. Afinal, a grande queixa do Senhor à santa é a de ter sede de amor, mas não ser correspondido pelos seres humanos. E como podemos amá-Lo mais? – A resposta, na Sagrada Escritura, é muito clara: amando os irmãos (cf. Mt 25,40; Gl 5,14; 1Jo 3,14; 4,20). Tal amor, porém, não nasce do nada. É preciso conformar-se, com a graça divina, ao Coração mesmo de Jesus para obtê-lo. Por isso, ensina o Papa: “O amor aos irmãos não se fabrica, não é fruto do nosso esforço natural, mas exige uma transformação do nosso coração egoísta. Nasce então espontaneamente a célebre súplica: ‘Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso’. Por isso mesmo, o convite de São Paulo não era: ‘Esforçai-vos por fazer boas obras’. O seu convite era mais precisamente: ‘Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus’ (Fl 2,5)” (n. 168). Este modo de amar sempre foi o distintivo do cristão e chegou a incomodar o próprio imperador Juliano, depois apelidado de “o apóstata”, que pensava em criar instituições de caridade para competir com os homens e mulheres de fé no seu amor ao próximo (cf. n. 169).
E o Papa vai adiante: “Mesmo do ponto de vista da ferida do seu Coração, olhar para o Senhor, que ‘tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores’ (Mt 8,17), ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor [Cf. Bento XVI, Carta ao Prepósito Geral da Companhia de Jesus na ocasião do 50º aniversário da Encíclica Haurietis Aquas (15 de maio de 2006): AAS 98 (2006), 461]. Se contemplarmos a entrega de Cristo por todos, torna-se inevitável perguntarmo-nos por que razão não somos capazes de dar a nossa vida pelos outros: ‘Foi com isto que passamos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos’ (1Jo 3,16)” (n. 171).
Isto posto, Francisco se volta para grandes exemplos de amor vivenciado pelos santos ao longo da História da Igreja, e que os levava a comunicar o que beberam do Coração de Jesus ao próximo. São citados entre outros: São Bernardo de Claraval, a convidar a volta para Jesus pelo amor (cf. n. 177); São Francisco de Sales, a dizer que nas pequenas coisas (como também nas grandes) e, sobretudo, no amor ao próximo, “roubamos” o Coração do Senhor (cf. n. 178); São Charles de Foucauld, desejoso de, em tudo, imitar a Cristo e irradiá-Lo ao próximo (cf. n. 179) e São Vicente de Paula a dizer que se Cristo vive no coração do sacerdote, ele O inclina para os pobres (cf. n. 180).
A seguir, o Papa trata do delicado tema da “reparação”. Para bem explicar o que significa reparar o Coração de Jesus dos pecados contra ele cometidos, cita longamente São João Paulo II (cf. n. 181-182) e conclui: “Junto a Cristo, sobre as ruínas que, com o nosso pecado, deixamos neste mundo, somos chamados a construir uma nova civilização do amor. Isto é reparar conforme o que o Coração de Cristo espera de nós. No meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza” (n. 182). Reparar as estruturas geradoras de pecados com amplas repercussões sociais também é nossa missão, missão não só externa, mas sobretudo interna, pois brota de uma espiritualidade profunda (cf. n. 183-184) e nos chama a reparar também os corações feridos dos irmãos e irmãs à nossa volta (cf. n. 185-186). Pedir perdão não é, pois, algo degradante. Pelo contrário, dignifica o ser humano o faz sentir também maior compaixão pela dor do irmão (cf. n. 187-190).
Nota-se, assim, que Deus não depende de nós, mas, em seus imperscrutáveis desígnios, quer depender. Daí o Sumo Pontífice escrever: “Santa Margarida conta que, numa das manifestações de Cristo, Ele lhe falou do seu Coração apaixonado de amor por nós, que ‘não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las’ [Autobiografia, n. 53: o. c., 57]. Uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega” (n. 194). Neste campo, entra Santa Terezinha do Menino Jesus a demonstrar (e o Papa a cita longamente) que, em pequenos atos de amor, podemos agradar – e não apenas aplacar a Justiça divina – o grande Amor divino (cf. n. 195-199).
Por fim, o Papa escreve: “É necessário acrescentar que a reparação de Cristo enquanto ser humano é oferecida ao Pai por obra do Espírito Santo em nós. Portanto, a nossa reparação ao Coração de Cristo dirige-se, em última análise, ao Pai, que se compraz em ver-nos unidos a Cristo quando nos oferecemos por Ele, com Ele e n’Ele” (n. 204). Uma bela prática, que também o Santo Padre nos convida, é a de fazer o mundo se enamorar de Cristo por meio do exemplo cristão – que não é promover ações sociais desprovida de sentido religioso (cf. n. 205) –, mas “falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para O amar, é o maior desejo de um missionário da alma” (n. 210). Quem se apaixona por Cristo, d’Ele fala sem receio ao mundo (cf. Mt 10,32; 1Cor 9,16; Jr 20,9). Tudo isto, não individualmente, mas em comunhão (cf. Jo 13,35) e no amor mútuo (cf. Mt 25,40). E é Ele mesmo quem coopera (cf. Mc 16,20), envia-nos (cf. Lc 10,3) e está conosco (cf. Mt 28,20) sempre (cf. n. 211-215). Todos somos chamados a dar de beber o Senhor (cf. n. 216)
Em todo este mar de amor, não pode faltar Nossa Senhora: “Na Igreja, a mediação de Maria, intercessora e mãe, só pode ser entendida ‘como participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo’ [S. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris Mater (25 de março de 1987), 38: AAS 79 (1987), 411], único Redentor, e ‘esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la’ [Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. Lumen Gentium, 62]. A devoção ao coração de Maria não quer enfraquecer a adoração única devida ao Coração de Cristo, mas estimulá-la: ‘A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia’ [Ibid., 60]. Graças à imensa fonte que brota do lado aberto de Cristo, a Igreja, Maria e todos os fiéis, de diferentes maneiras, tornam-se canais de água viva. Deste modo, o próprio Cristo revela a sua glória na nossa pequenez” (n. 176).
Eis como finalizamos esta série de artigos apresentando a encíclica Dilexit nos que, segundo o amado Papa Francisco, está em sintonia com a Laudato si e a Fratelli tutti (cf. n. 217), por isso, convida-nos a contemplar a glória do Tabor, mas, depois, dali descermos e nos colocarmos a serviço dos mais necessitados de nós (cf. Mt 17,1-8.14-21).
Jesus, manso e humilde de coração, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso!