Nada há de mais significativo do que a origem da palavra misericórdia: a miséria humana passando pelo coração de Deus. Por isso, os vinte anos da instituição do Domingo da Divina Misericórdia, instituído por São João Paulo II, e que celebramos no segundo domingo depois da Páscoa, deve sim ser mais valorizado e testemunhado como um dia de maiores louvores e gratidão. Especialmente hoje. Especialmente em tempos de pandemia e total miséria humana diante de suas fraquezas biológicas. O mundo grita: misericórdia, Senhor!
Misericórdia! Esse grito de socorro ilustra bem a grande insegurança humana nos momentos de privações ou provações. Foi assim desde sempre. Centenas de passagens bíblicas, do antigo e novo testamento, provam que a miséria humana foi sempre seu maior clamor e a intervenção divina uma resposta eficiente. A história está eivada desses acontecimentos. O povo de Deus sofreu escravidões e perseguições desde seus primórdios. Amassou barro no Egito. Viveu um lento e maravilhoso processo de purificação durante quarenta anos no deserto. Assim cresceu e amadureceu no sonhado direito de liberdade e soberania. Ganhou sua terra prometida e viveu tempos de bonança e alegria.
Como sempre, decaiu. A pandemia virulenta da prepotência o levou a um novo processo de escravidão. Esse vai e vem, essa situação de efervescente respeito ao que é sagrado, em especial seu temor a Deus, constituiu a maior e mais significativa característica humana diante dos mistérios da própria vida. Reconhecer e valorizar sua essência, razão dos seus dias, prova de sua origem divina, é um precioso momento que a espiritualidade humana vivencia a partir de suas fraquezas. Então, em uníssono, nos lembramos do Pai e recorremos a Ele. A fé salta aos olhos da sociedade fragilizada e carente e o mundo cristão pede socorro.
Tal qual aquele cego nas ruas da pequena Jericó: “Filho de Davi, tem piedade de mim!” Ou o leproso no seu apelo quase inseguro: “Senhor, se queres, podes curar-me”. Ou mesmo aquele centurião romano intercedendo por seu servo: “Eu não sou digno que entreis em minha casa, mas dizei uma só palavra e meu servo será curado”. Uma só palavra divina e obterei a cura desejada! Ainda há dúvidas? Pois a sogra de Pedro ardia em febre e pediram por sua cura: “Inclinando-se sobre ela, ordenou ele à febre, e a febre deixou-a”. Ordenou Cristo e a cura se fez! Então o detalhe: “Ela levantou-se imediatamente, e se pôs a servir”… Esse detalhe da graça não nos pode fugir. Porque o processo de cura exige não só uma disposição renovada de serviço ao irmão, como também a renovação espiritual como na cura do paralítico, onde a primeira graça foi o perdão dos pecados. “Quem é esse homem que profere blasfêmias? Quem pode perdoar pecados senão unicamente Deus?” Essa é a grande questão do mundo diante da fé cristã.
Eis porque a imagem da divina misericórdia está relacionada com o momento em que Jesus ressuscitado aparece a seus discípulos, em especial a Tomé, aquele que duvidou, e lhe apresenta suas chagas (Jo 20, 19-31). Restabelece e evoca em parte o grito dos dez leprosos aos clamar: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”. A cura se processa, mas só um, um samaritano, alguém fora do rebanho, é capaz de reconhecer a graça e voltar para agradecer. Só Tomé, o incrédulo, foi capaz de se humilhar diante do milagre da vida restabelecida em Cristo e por Cristo e exclamar diante de sua misericórdia: “Meu Senhor e meu Deus!” O momento é esse, o mundo precisa reconhecer e clamar: “Deus Santo, Deus Forte, Deus Imortal, tende piedade de nós e do mundo inteiro”. Repita. Seu grito não é único, mas precioso.