Caminhando à margem de uma ferrovia semiabandonada, deparei-me com uma pichação num muro caiado: “Escrevo no coração uma besteira, que não usa chuteira. O canto vivo de uma nação com a mente vazia: vou viciar seu filho um dia”. Parei aterrado diante daquela tentativa poética, sem métrica, mas de rimas forçadas com silente, mas fatal ameaça. Até os versos – cantilena dos corações sensíveis – adquirem o timbre gutural e cavernoso da perdição humana! Até poetas ostentam insensibilidade!
Fiquei a imaginar como seria o rosto desse poeta dos nossos tempos. Jovem, com certeza. Mas cuja vida não rima com o coração, nem com a pátria, nem família, nem sociedade, nem humanidade… Jovem como tantos que diariamente cruzam nossas estradas, nos espreitam, nos analisam, nos invejam… Jovens para os quais a estrutura social não faz sentido, a harmonia familiar inexiste, o mundo certinho é careta, convenção armada e alimentada só pelos que se deram bem, nasceram privilegiados, estão no topo de uma pirâmide que eles contestam, seja esta da estrutura social, moral ou mesmo religiosa. Sociedade, para estes é o conluio de interesses de poucos. Família, utopia. Religião, sonho dos tolos.
No silêncio daquelas palavras à minha frente havia uma mensagem ensurdecedora. Mas que muitos não querem ou teimam em não ouvir. Havia uma verdade, não tão pura, mas real. Um recado claro e objetivo para aqueles que insistem em ignorar o mundo cão que as drogas estão deixando como herança para nossos filhos e netos. “Ainda vou viciar seu filho”. Nem o rosnar de um animal selvagem, nem o ladrar dos cães, nem o sibilar das serpentes causam tamanho espanto e temor. Pior ainda quando muitos desviam o olhar, se fazem de surdos e cegos, passam adiante como se dissessem: isso não é comigo!
“O canto vivo de uma nação com a mente vazia”. É isso. Enquanto aqueles que, direta ou indiretamente, teimam em ignorar esse câncer silencioso que corrói toda uma nação; enquanto muitos se isolam, se abstêm das responsabilidades coletivas, o mal avança e contamina até a poesia da existência humana. Mais que guerras, doenças, cataclismos ou fome, a ameaça das drogas age no silêncio da indolência social – essa que anestesia a realidade dos sepulcros caiados – que só vê a superficialidade do problema. Triste será se um dia encontrarmos nesses sepulcros um filho, uma filha, alguém que amamos, mas para quem não devotamos uma atenção ou orientação maior. Nação com a mente vazia…
Besteira não usa chuteira. Enquanto o circo das grandes torcidas dá vivas ao gol de alguns, ao sucesso das ilusões, das aparências, o cravo da chuteira dos traficantes faz seus pontos no silêncio das nossas madrugadas, na apatia de nossa sonolência sem ação, sem sonhos, sem perspectivas. Estamos em guerra. Mas, pelo visto, só os inimigos possuem armas! Só o mundo cão, daqueles que desejam o circo em chamas, que riem da nossa madorra e indiferença, é que canta vitórias.
É preciso restaurar os valores, a poesia da vida. Não se pode estacionar nessa trilha, nessa estrada que nos conduz para um mundo de insanos, de famílias destruídas, lares arruinados. O trem apita na curva. “Refleti no que fazeis! Subi a montanha, trazei a madeira e reconstruí a minha Casa” (Ag 1,8). A Casa de Deus que somos, o templo sagrado da dignidade humana, dos princípios pétreos da vida, hoje tão banalizados e longe da realidade que nos cerca. “Porque minha casa está em ruínas, enquanto que cada um de vós só tem cuidado da sua” (Ag 1,9). Por isso o poeta já não escreve com o coração, mas com a razão que domina seu mundo, os caminhos da marginalidade.