Assunto: entrevista com Cleber da Silveira
Crônica de Cleber da Silveira
Como gostava de sair com Pe. Alderígi, indo com ele de capela em capela! E como me impressionava o olhar das pessoas, vendo nele um profeta, vendo nele um pai, um amigo. O povo, olhando para ele, parecia dizer: «Chegou a salvação para nós. Junto dele vou obter tudo o que preciso». Pe. Alderígi, onde ia, levava seu olhar de paz, pois a paz do espírito era o espelho de sua alma. O olhar dele refletia, realmente aquilo que ele era.
No, entanto, havia momentos em que ficava muito irritado. Isto me causava surpresa porque ele sempre irradiava bondade. Era bondade ambulante. Onde ia, levava bondade. Então, se ele se irritava, eu não entendia. Até saía de perto.
Impressionante foi a atitude desse bom ancião, quando levou para sua casa o garoto José Afonso, sofrendo de câncer no joelho. Eu evitava ver esse menino porque tinha medo da realidade daquela doença. Vio-o apenas umas três ocasiões. Vi-o não porque fora visitá-lo, mas, sim, por acaso. O padre nem notou minha presença. O menino gritando. Coisa horrorosa. Gritava com dores horríveis e o padre com carinho extremo. Eu queria fugir daquele lugar. Mas, tão impressionado fiquei com o carinho e as palavras cheias de ternura do santo sacerdote, que não conseguia sair do lugar. O menino tinha uma expressão facial horrível e o padre ia falando, falando, tomado de compaixão, e o semblante do menino ia mudando, mudando. Daí um pouco de tempo, o enfermo estava dormindo.
Era impossível a gente ter medo dele, tamanha era sua compreensão. Em meus 9 anos, uma de minhas bagunças infantis era sujar um pedaço de pau com fezes e combinar uma briga séria, mas de mentirinha, com algum colega, seja o Paulo do Fioravante, ou o Messias, ou o irmão do Messias. Quando chegava alguém, aconselhando o fim daquela briga perigosa, a gente concordava e pedia-lhe que segurasse o pedaço de pau, só para ficarmos dando gargalhadas ao ver alguém humilhado, segurando aquela sujeira toda.
Alguém contou tudo para o Pe. Alderígi e, um dia, em que eu estava contando dinheiro das coletas, ele chegou e veio perguntando: «Qual a última vez que você entregou aquele pedaço de pau sujo para as moças segurar?»
Atrapalhado, tentei despistar, negando aquela história toda. Mas, ele insistiu: «Não estou perguntando se fez. Eu só pergunto quando foi a última vez».
– Ontem.
– Então, foi a última. Você vai prometer para o Pe. Alderígi. Não vai prometer para Deus. Para Deus você não cumpre nada.
– Não vou prometer para o Sr.
– Vai prometer porque você é menino inteligente. Menino inteligente não faz dessas coisas.
– Faz sim por que fiz.
– Fez porque não raciocinou. Se raciocinar você nunca mais vai fazer. Nem precisa prometer.
Nunca mais fiz. Percebi tratar-se de brincadeira estúpida.
Mas, descobri outra arte bem mais saborosa: beber o vinho da missa. Só que o santo de Deus descobriu tudo e veio me perguntando:
– Sabe você quem anda tomando o vinho da sacristia?
– Sei – e, abaixando a cabeça e também a voz, confessei – eu mesmo.
– Você gostou deste vinho?
– É o melhor que eu já tomei.
– Já que nós sabemos que esse tipo de bebida não faz bem para criança (e você é uma criança), da próxima vez, você vai pedir. – E, saindo não sei para onde, ele arrematou: Estamos conversados.
Pouco antes de eu ingressar no seminário, nos meus 10 anos de idade, ele me convidou tomarmos um pouco do tal vinho. Só que ele colocou no copo apenas um dedindo assim e eu, um tanto decepcionado, reclamei: «Só isto? Então, não preciso tomar mais nada». E ele me falou coisa muito importante que, se eu tivesse levado a sério, não teria me tornado alcoólatra:
– O ideal seria não tomar nem esse golinho. Mas, como vai ser padre, é necessário que o tome. Mas, nunca vá além disso, pois, corre o risco de ser engolido por ele.
Sua bondade e compreensão para comigo se manifestou maior, mais tarde, quando lhe falei estar disposto deixar o seminário. Prudentemente, ele me aconselhou: «É melhor esperar mais um pouco para ver se consegue vencer essa tentação. Se for para ser padre, Deus lhe avisará no caminho».
Depois de dois anos, quando me decidi a deixar mesmo o seminário, sobreveio-me o medo de Deus, pois meus superiores, no seminário, falavam do perigo de estar desperdiçando a graça de Deus. No entanto, Pe. Alderígi, com mais compreensão e psicologia, me encorajou: «Sai! Se Deus quiser outra coisa de você, ele mesmo lhe avisará».
Mas, compreensão sem conta de nosso pastor era para com o sofrimento do povo. Uma vez, ameaçaram modificar o esquema da festa principal, a festa de Santa Rita de Cássia, realizada anualmente no dia 22 de maio, quando dezenas e dezenas de milhares de peregrinos chegavam, precedidos de centenas de barraqueiros que vinham para vender suas bugigangas, com seus gritos e seus alto-falantes. Havia gente que achava que tudo aquilo avacalhava o espírito religioso da festa, pois, lembrava o templo de Jerusalém, com seus vendilhões. Havia o sussurro de que a festa teria uma conotação diferente, com as barracas e barraqueiros longe de Jesus, longe da praça que cerca o santuário.
O bom vigário não concordou: «Dentro do templo de Jesus todos estão voltados para a Santa Rita e para Deus. Esse povo, que veio de longe, precisa beber, precisa comer. Então, é melhor que os barraqueiros e suas barraquinhas estejam perto deles e, também, perto de Jesus.
Pe. Alderígi não faz parte dos heróis de minhas histórias. Eles não se parecem com ele, nem Robin Hood. Exceção de um: O nosso santo era um Dom Quixote. Por que? Porque comprava brigas impossíveis, porque queria fazer o que era impossível. Ele acreditava no humano. Ele era louco como Dom Quixote, acreditando na pureza do homem. Achegava-se a ele gente safada e o Pe. Alderígi acreditava neles. Eu, criança, não aceitava que comerciantes nojentos, que só pensavam em dinheiro, viessem mentir para ele, tapiando-lhe a boa fé. Então, eu, naquela idade, sentia-me culpado, prejulgando tais pessoas: «Não julgueis para não serdes julgados». Em minha consciência e por causa de minha admiração por ele, tinha que acreditar que eu estava errado e que Pe. Alderígi certo. Para mim, aquela bondade vinha diretamente do dom de Deus porque não acreditava que gente pudesse ser bom daquele jeito.
Pe. Alderígi tinha atitude que seria chamada de boba e não de bondade. Mas, tratava-se de bondade pura. Para mim, Pe. Alderígi era um Jesus Cristo gordo e até mais bonzinho que o primeiro, conhecido por mim, com certos vestígios de carrasco.
Em meus 14 anos, uma coisa me deixou indignado: O Padre Alderígi não falava bem em suas pregações. As palavras não saiam claras. Eram pastosas.
Fiquei revoltado quando um romeiro falou para outro peregrino: «Esse padre pode ser santo, pode ser bondoso. Mas, deveria aprender a falar. Não tem dicção.» Não aguentei e entrei na conversa: «Vocês acham mesmo que um homem que é padre, que cursou os níveis mais elevados do estudo humano, inclusive oratória, hoje com a idade que tem e como vocês mesmos disseram Ainda por cima, santo`, vocês acham mesmo que um homem deste precisa falar para ser entendido? Vocês são burros».
O homem virou para o outro: «O que esse moleque tem? Nós não falamos mal do padre». Eu repliquei: «Falaram sim. Se vocês não entendem o que ele fala, precisam apenas prestar atenção como ele fala. O que é importante nas palavras dele não é a palavra em si, mas sim as atitudes que regem a vida dele».
Meus heróis não combinam com Pe. Alderígi. Ele era o meu herói. O que admirava é que o Pe. Alderígi era ser humano, gente como a gente. Mas, tinha algo de Deus, algo de transcendental. Ele era colocado do lado de Deus. Era gente mas não era gente. Agia como gente. Mas, Deus assim com ele.
Pe. Alderígi era mais que herói. Era crédito especial para ser usado em extrema necessidade. Era recurso para ocasiões inesperadas, quando o ser humano não tivesse nada mais para agir. Tanto assim que em minhas situações de conflitos internos, relacionados a Deus, eu levava tudo para esse meu guia. Na realidade era muito mais que um herói. Ele era Jesus Cristo na terra, apenas mais bonzinho, como já falei e dei os motivos.
Em minha educação, recebida em cidade do interior, tudo era pecado. Como isso atrapalhava o menino vivo, alegre e sempre envolvido em artes! Mas, Pe. Alderígi me apresentou Jesus, na essência de Jesus Cristo.
Lembro-me direitinho da frase deste inteligentíssimo e santo teólogo que até hoje me dá tranquilidade: «Menino, o pecado mortal só existe quando a gente faz questão de afrontar a Deus. Isto é: quando a gente, conscientemente, decide fazer o mal, decide prejudicar alguém ou a gente mesmo e vai em frente e olha pra Deus e lhe diz: Eu faço o que eu quero`. Já fez algum pecado deste?»
– Nunca. Jamais vou fazer isto.
– Esse pecado é o tal que chamamos de mortal. Esse, se acontecer, deverá ser confessado. Agora, tome cuidado com aqueles que precedem esses mortais! A gente pode se acostumar com eles. Então, o que você acha muito impossível (foi você que falou «jamais farei um pecado mortal»), através destes, fatalmente você chegará naquele. E, o pior, até achará que não é mortal.
Hoje, com 49 anos, penso que Pe. Alderígi é uma das almas predestinadas que veio aqui na terra, para apresentar a quem com ele tivesse contato, a face de Deus. Era uma pessoa que, não sendo Jesus, pôde ter uma bondade tão grande, um respeito tão sublime pelo ser humano, a ponto de levar a gente a entender como deveria ter sido o Divino Mestre. Foi através do Pe. Alderígi que cheguei ao meu bondoso salvador.
CONTRIBUIÇÃO: Cleber da Silveira (1950), vendedor autônomo. * Entrevista em 22/08/99. * Av. Carlos Grimaldi, 619 – Fone: 019 207-0968 * 13091-000 – CAMPINAS, SP.