Tons de cinza

    Nada a ver com o famoso livro, do qual desconheço qualquer parágrafo. Mas o título acima possui algo de místico e poético, já que o simples imaginar do cinza como cor de nuances diversos ou como produto de combustão pelo fogo, já nos faz pensar. Como título que se dá a um dia da semana no ano, mais ainda. Como quarta-feira sucedânea de dias de folia carnavalesca então… Como vemos, uma simples cor é que dá o tom de nossa conversa hoje.

    Por que a Igreja escolheu essa cor para iniciar seu período de penitência quaresmal? Temos pela frente quarenta dias de muita reflexão litúrgica, voltadas especialmente para o aspecto de mortificações e sacrifícios que visam a plenitude espiritual de qualquer cristão. Não é um mero gesto, um simbolismo estereotipado, imposto pelas normas canônicas ou mesmo ritualistas da Igreja. O ato de receber as cinzas, mais que um sacramental litúrgico, deve ser, primeiramente, atitude de mudanças de um coração penitente. Quem as aceita com humildade e fé, recebe um sinal concreto de conversão, mudança de vida.

    A tradição litúrgica vem de longe, da Igreja Primitiva, que abria o período quaresmal com o gesto da imposição das cinzas, lembrando a finitude do corpo: “Tu és pó e a ele voltarás”. Também a necessidade de constante aprimoramento de nossas condutas cotidianas, atentas que devem estar aos ensinamentos da nossa fé: “Convertam-se e creiam no Evangelho”. É exatamente uma dessas duas frases (é opcional) que os celebrantes do sacramental das Cinzas pronuncia ao ministrar as cinzas sobre a cabeça do penitente, traçando com elas o sinal da cruz. Na liturgia primitiva esse gesto dava inicio aos quarenta dias de penitência em preparação ao grande sacramento da quinta-feira santa, ou seja: a confissão, o sacramento da Reconciliação! Eis porque em todo o período da quaresma a Igreja nos convida a buscar esse sacramento.

    Mas não paramos por aqui. Algo muito mais significativo vem da própria origem latina da palavra: cinis, cinza. Talvez para muitos seja apenas um tom, uma cor sem graça, que estampa em sua fronte o cinismo da própria falta de fé. A estes é oportuno lembrar que essa cor vazia de atrativos é derivada da mistura do branco com o preto (a miscigenação das raças), do dia com a noite (a nossa transitoriedade), mas sobretudo, produto de uma combustão pelo fogo (a purificação da alma). Esse produto, nas cerimonias católicas, vem da queima dos ramos bentos que sobraram do ano anterior, acrescidos pela água benta e incensos sagrados. Eis o que nos sobra: os ramos verdes e tenros que outrora saudaram o Cristo com Senhor e Rei, hoje nos cobrem a vergonha de muitas fraquezas e infidelidades diante de sua doutrina. O que fizemos de seus ensinamentos? As cinzas daquela aclamação reposicionam nossas atitudes e reanimam nossa fé.

    O magistério da Igreja não desperdiça gestos e rituais. Aquilo que para muitos aparenta nuances ridículos, inconcebíveis nos tempos modernos, se aprofundado e vivenciando com conhecimento de causa, torna-se muito mais que um gesto simbólico, mas um instrumental capaz de provocar mudanças radicais, conversões sinceras. Receber cinzas sobre nossas testas não é mais um ritual ou rito carnavalesco, mas uma atitude de fé. Dá início a um período de jejum e abstinência só compreensível e justificável para aqueles que buscam aprimoramentos na vida. Estes se dão com atitudes, determinações pessoais. Ninguém cresce sem esforço. Ninguém vence sem renúncias. Ninguém supera sem suor, sem sacrifícios, sem a depuração do fogo… Deste mesmo fogo que Jesus desejou estar ardendo, queimando nosso ego, nossa prepotência de nos acharmos donos de nós mesmos, quando pó é o que somos. Deste, nem cinzas sobrarão.

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